domingo, 19 de abril de 2009

A MODERNIDADE

A Modernidade pode, sinteticamente, ser enunciada como um espaço-tempo expansivo, historicamente tendente à globalização, com seus primórdios no Renascimento Humanista e na chamada Revolução Comercial, marcado pela emergência e desenvolvimento de uma cultura baseada na Razão estritamente humana, capaz de compreender o mundo e nele interferir, transformando-o radicalmente e submetendo-o ao conhecimento humano, especialmente sob a forma da ciência e da técnica.

Freqüentemente, a Modernidade é também associada aos grandes eventos posteriores da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, assim como da formação e decisiva influência do pensamento iluminista. Não resta dúvida que o processo de industrialização e urbanização aceleraram a liquidação da principal instituição do mundo feudal, a servidão, resultado do desenrolar do capitalismo, promovendo o desterro forçado dos campos e a constituição de enormes contingentes populacionais de homens livres e sem posses, que formaram a base do chamado proletariado. A Revolução Francesa, por sua vez, representou a grande ruptura histórica com o poder monárquico e com as instituições políticas remanescentes do feudalismo, assentando os princípios da liberdade e da igualdade formais – jurídicas - de direitos entre os homens e da condição da cidadania individual dela decorrente, do poder da lei humana, do republicanismo, do constitucionalismo, assim como da separação da ordem civil do mundo das crenças e da institucionalização obrigatória da educação leiga – não religiosa. O Iluminismo, por sua vez, constituiu-se no grande movimento intelectual propulsor desta nova sociedade, que passava a consolidar o progressivo domínio do capitalismo, na sua forma industrial, e de sua classe ascendente e hegemônica, a burguesia. Trouxe, para o plano político, a força da Razão e as causas do “esclarecimento” do homem, defendendo o conhecimento da realidade contra a superstição e o obscurantismo, e afirmando o indivíduo como ser livre e protagonista da sua realidade, e este, quando no domínio político, cidadão, participante ativo de sua ordem e criador de direitos.

Pode-se sustentar que a Modernidade tem como fundamentos necessariamente associados de sua constituição e progressiva expansão o Capitalismo, adiante definido, e o conhecimento da Ciência. Essa conjunção permite consignar que uma marca prevalecente da cultura humana moderna é o individualismo, que no seu decorrer aparecerá de vários modos, mas que certamente se ampara nos princípios capitalistas da concorrência privada e individual, da liberdade humana e do seu uso racional, além do desenvolvimento de uma intimidade privada.

Compreende-se, então, que o tempo-espaço de formação da Modernidade é inicialmente o do Ocidente Europeu, mas que traz, precisamente, como uma de suas peculiaridades, a tendência à globalização, na esteira do próprio capitalismo, que, por natureza, não reconhece quaisquer fronteiras. Este avassalador processo de expansão e incorporação de outros territórios e sociedades pode ser representado, entre outras conceituações, pelo surgimento do comércio de longa distância europeu e pelas grandes navegações, pela formação dos estados-nações, pelo colonialismo e neo-colonialismo, pelo imperialismo e pela transnacionalização, até a mundialização econômica e política atuais, com a comunicação em tempo-real e a formação de grandes blocos econômicos – só para citar alguns fenômenos relevantes. Hoje, países, regiões e locais são, ainda que desigualmente, profundamente impactados pelo estilo de vida moderno e por seus princípios culturais, moldando-se também à sua economia e instituições políticas. Se sua aceleração ocorre na fase clássica dos eventos estreitamente relacionados da revolução econômica industrial e da revolução social e política francesa, seus primórdios se encontram no Renascimento e na Revolução Comercial e se estendem, com intensidade e abrangência quase totais, até os dias de hoje. Deste modo, ainda que teorias, com suas pertinências, tenham verificado a emergência de formas “pós-modernas” de sociedade, parece difícil sustentar que as grandes maiorias sociais tenham abandonado a Modernidade, justamente porque continuamos a ver vigorar, sem dúvida que com profundas e rápidas transformações, os seus fundamentos e as suas características principais. A propósito, uma destas características é a célere mudança da vida, em todas as áreas, pela valorização do “novo” ante ao tradicional ou antigo, mas sem que isto tenha, até então, lhe subtraído suas bases, que podem ser identificadas no modo econômico capitalista de produzir e consumir e nos componentes culturais dominantes do cientificismo e do individualismo, que permanecem e mesmo se acirram como diretivas principais do estilo de vida moderno.

Ao lado do Individualismo, portanto, e também como uma das condições para este, destaca-se como traço cultural proeminente e dominante da Modernidade, de profundo poder transformador das condições sociais e pessoais e, conseqüentemente, do estilo de vida e das instituições, o conhecimento científico que, diretamente vinculado ao capitalismo, desenrola-se no próprio compasso deste espaço-tempo, produzindo-o decisivamente. Este é certamente um entre outros tipos de conhecimento e se vincula, no seu surgimento e desenvolvimento, à uma época histórica particular da modernidade e aos espaços que conquista. Desse modo, pode-se dizer que o conhecimento científico é um componente determinante da cultura moderna, ainda que não exclusivo. Ao mesmo tempo, o domínio científico do mundo, vinculado à economia capitalista, é possivelmente o seu problema mais controverso, responsável pela emergência do tema da “crise” da modernidade: a ciência, principal difusora da percepção de que o mundo pode ser compreendido e nele se pode interferir eficientemente, ensejando aos homens progresso, liberdade e bem-estar crescentes, também pode acarretar o oposto, sob várias formas, com conseqüências que podem provocar até a morte das espécies humana e naturais.

A ciência poderia ser caracterizada, brevemente, como uma atividade baseada no conhecimento sistemático, submetido à realização de provas e revestido de objetividade. Por sistemático, deve-se compreender aquele conhecimento que visa à resolução de um determinado problema, através da investigação e do acúmulo contínuos de informações. Provas são os meios de auto-certificação que as disciplinas científicas elaboram para verificarem a veracidade das explicações propostas. Objetividade é aquela qualidade que corresponde às características do objeto investigado, ou seja, que lhes são próprias e que, uma vez identificadas, possuem validade geral, independentemente de considerações subjetivas - particulares de um sujeito.

O conhecimento científico é característico da época moderna, também, porque esta se identificaria com a elaboração e o uso generalizado do próprio do método científico, com seu desdobramento em disciplinas de diferentes áreas. O conhecimento científico não é, obviamente, o único a vigorar na modernidade, mas é um produto desta, ao mesmo tempo em que o promove e faz caracterizar-se como época em que este tipo de conhecimento distinto afirmou-se e legitimou-se como característica dela mesma.

Ao lado do conhecimento científico, outras formas de conhecimento que podem ser mencionados são o religioso, mágico, mítico e místico. Estas formas de conhecimento baseiam-se na fé e em crenças, não sendo auto-certificáveis objetivamente. A ciência, do ponto de vista de seu discurso, tende a desfazer da validade destas últimas formas de explicação do mundo, colocando em dúvida sua própria condição de conhecimento. Essas formas, entretanto, não podem deixar de ser consideradas como de conhecimento, no sentido de que servem de explicação e de orientação para a vida e as indagações de muitos indivíduos, embora possam ser denominados conhecimentos “tradicionais” ou de “não modernos”.

A ciência e a técnica se recobrem de enorme legitimação, na modernidade, por relacionarem-se ao inédito incremento de riquezas e à transfiguração das sociedades que são por ela alcançadas. O conhecimento científico está inteiramente presente nos processos produtivos, nas tecnologias de informação e transportes, na resolução de enfermidades, assim como na realização de ouras tantas tarefas da vida rotineira e na resolução de problemas individuais ou coletivos.

A modernidade traz uma nova forma de sociabilidade, ou seja, novas relações, modos e estilos que envolvem a vida coletiva. Nela verifica-se um ritmo intenso de mudanças, muito superior ao das sociedades "tradicionais". A mudança constante, como já se mencionou, caracteriza distintivamente o período moderno de outros. A modernidade dependeu da expansão do Capitalismo e da superação das formas de vida de “sociedades tradicionais” - sobretudo a feudal. Esta ruptura, bem como sua intensidade e abrangência, devem-se diretamente ao capitalismo.

Sumariamente, pode-se caracterizar o capitalismo como um modo de produção e consumo voltado ao lucro, baseado num regime de concorrência mercantil, envolvendo necessariamente trocas desiguais, entre proprietários privados e não proprietários, em que a conversão e circulação de mercadorias pode alcançar todos os bens, inclusive a força de trabalho.

Nem tudo que surge com a modernidade, entretanto, deve ser reduzido a um produto do capitalismo. As idéias e os preceitos de Igualdade, Liberdade, Racionalidade, Justiça, Ética, Democracia, não apenas podem ser admitidos para além dos fundamentos da sociedade capitalista, como nela, muitas vezes, não encontram a oportunidade de sua realização.

A presença da economia de forma capitalista e sua própria expansão, contudo, é essencial para a progressão e consolidação da modernidade, que é, por isto, genuinamente capitalista. Por um lado, quase todo incremento técnico, que hoje domina o mundo e legitima uma cultura racional-científica, foi sendo exigido e agregado à produção capitalista, pela busca compulsiva e quase ilimitada do lucro econômico. As passagens e formações de um capitalismo comercial, para outro industrial e mesmo para outro, hoje denominado pós-industrial, só podem ser compreendidas por esta conjunção de capitalismo e ciência, em que revoluções técnicas impulsionaram e impulsionam a constituição de mercados de massa, precisamente ocasionadas pela realização do objetivo último do lucro de empresas e indivíduos.

Por outro lado, em razão desse objetivo, o mundo e todos os seus objetos e dimensões, quase sem exceção, foram sendo convertidos em mercadoria, em valores de troca voltados ao lucro, o que generalizou a forma do trabalho assalariado livre, dissolvendo ao longo do tempo as formas servis e escravas de produção econômica – mesmo que estas, em determinados períodos e lugares, tenham servido justamente à expansão capitalista. Mesmo recriando-se um universo de desigualdade social, este fato possibilitou o surgimento do indivíduo, entendido como sujeito indivisível, juridicamente livre e guiado por seu próprio arbítrio, criado e dissolvido nas relações competitivas de mercado.


A Sociologia, diga-se de passagem, só poderia ser compreendida como um produto – aliás, relativamente recente – da própria modernidade, como um conhecimento sistemático que se pretende compreender aos fenômenos sociais. E encontra, nas características e nas transformações das formas da vida coletiva que sob ela se realizaram e se realizam – na hipótese de prosseguirmos na vida moderna - seu foco privilegiado.

O período e o espaço geográfico modernos vêm a revelar características que são próprias ou exclusivas, o que os diferencia de períodos e arranjos territoriais anteriores. Estas características foram se consolidando no seu decorrer e reservam sua importância porque, até os dias atuais, se manifestam fortemente na constituição de nossa vida social. E todas elas diretamente associadas à referida interpenetração de capitalismo e ciência.

A modernidade, ao desenvolver uma cultura específica, o chamado humanismo, destacou a figura do indivíduo. A noção moderna de sociedade, por sua vez, contribuição direta do Iluminismo, é a de uma associação de indivíduos livres e conscientes, baseada na idéia de contrato, ou seja, uma associação pactuada entre indivíduos racionais, que são auto-determinados para convencionarem as suas formas de vida. O indivíduo moderno se destaca, deste modo, por apresentar os seguintes atributos: liberdade e autonomia; uma igualdade genérica e uma singularidade como diferente perante outros; a condição de um potencial detentor de direitos.

O indivíduo moderno fundamenta-se na racionalidade e no processo histórico que, convencionalmente, chamou-se de secularização. Esta representa um mundo e sua história inteiramente produzidas pelo homem e não por qualquer outro princípio ou força exterior, sendo o homem capaz de construir formas próprias de criar um direito humano e regular sua vida. A secularização é, especialmente, a ruptura com a idéia da produção divina do direito e da história. A Razão moderna pretende um domínio do mundo pelo conhecimento sistemático e um “desencantamento” deste mundo pela explicação racional – sobretudo científica -, em lugar da explicação não científica. A secularização, ao afirmar a legitimidade, somente, de um Direito Terreno, realça o antropocentrismo, a centralidade do humano e da razão humana própria no mundo, produzindo-o. O homem passa a ser detentor de autonomia, ou seja, de independência individual e coletiva na ação humana, assim como da possibilidade da auto-regulação da vida social ante a natureza ou o domínio das crenças.

Supondo tais característica, podem ser destacados alguns dos mais importantes aspectos que contribuíram para configurar a Modernidade, intimamente relacionados, e necessariamente derivados também da convergência de capitalismo e ciência:



Aspectos Econômico-Sociais


substituição da dependência servil ou patrimonial pelo contrato mercantil: as relações de trabalho e de consumo passam a ser objeto de troca mercantil, substituindo as formas baseadas na escravidão e servidão;

separação dos domínios da produção e do poder político: as classes dominantes, proprietárias de meios econômicos de produção, deixam de exercer seu poder político de modo direto – o que não significa que deixam de deter poder;

afrouxamento dos vínculos hierárquicos, locais e familiares: a família, além de flexibilizar-se internamente, é reduzida em seu papel de socialização, ao dividi-lo com outros lugares de interação social: as relações sociais superam o plano estritamente local, a hierarquia deixa de ser um princípio natural da organização política e é deslocada, sobretudo, para o âmbito das burocracias modernas;

transformação do mundo pelo desenvolvimento da técnica e da ciência: o conhecimento científico e a técnica, resultado do primeiro, aplicados aos processos de produção, consumo e comunicação, modificam inteiramente as formas de vida, que passam a exigir o seu domínio prático e a conter expectativas de resolução dos problemas da vida coletiva e individual;

mercantilização associada à industrialização: a economia mercantil dissemina-se, fruto da ampliação das relações capitalistas, baseada na circulação de bens industrializados;

urbanização e massificação do consumo de bens: o consumo de bens e serviços assume escala grandiosa e são produzidos em séries; a vida social passa a centralizar-se no meio urbano, lugar de concentração das atividades comerciais e industriais.




Aspectos Político-Culturais


legitimação das filosofias leigas (não religiosas) e das ciências: há uma valorização do pensamento racional e independente do homem, inclusive com pretensão à cientificidade, afirmando-se a sua possibilidade de conhecimento do mundo.

autonomia da organização política e dissolução do poder hereditário e clerical: a organização política passa a ser obra da iniciativa humana, passível de ser modificada por estes - especialmente sob a forma do poder constitucional-, dissolvendo as formas hierárquicas e hereditárias de transmissão do poder, assim como o domínio ideológico da religião;

constituição do princípio da legalidade e expansão do princípio e dos universos do Direito: a valorização da racionalidade e liberdade do homem, que sustenta a visão contratual de sociedade, supõe a lei, um princípio geral e impessoal, como a única fonte legítima de obediência; o Indivíduo afirma-se como um sujeito detentor e criador de direitos.

formação dos Estados-Nações, estabelecendo-se uma centralização político-administrativa: os domínios político-administrativos do mundo ocidental europeu, antes muito fracionados territorialmente, são agrupados em unidades nacionais - que passam concentrar os meios de gestão política, jurídica e administrativa.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A ABORDAGEM SOCIOLÓGICA

Já se considerou preliminarmente que o pensamento sociológico não somente é diverso em sua configuração, mas que também se divide em correntes teóricas e análises que se contrapõem.
Deste modo, não apenas temas ou problemas são analisados de forma diferente ou em perspectivas opostas, mas seria mesmo possível afirmar que se tratam de diferentes sociologias, pois elaboram distintas interpretações do que a vem a ser o grande fenômeno da sociedade.
Então, o que pode haver de pressupostos comuns entre tais correntes de pensamento, algumas das quais adiante estudadas, que permitiriam situá-las dentro de um mesmo campo de conhecimento, no caso, a Sociologia? A indispensável resposta a esta questão, aliás, é parte da resposta à mais usual indagação do princípio deste percurso: que é a Sociologia? Do que ela trata? Qual seu papel para o conhecimento humano?
O aspecto inicial a destacar é que, para a Sociologia, de modo geral, a análise do homem deriva do contexto da vida coletiva em que este se encontra inserido, ou seja, a própria sociedade. Dito de outra maneira e mais incisivamente, o próprio homem só pode constituir-se a partir da sociedade.
É claro que são homens que produzem suas sociedades, diante de determinadas condições estabelecidas. E, dependendo destas condições e das ações dos sujeitos sociais, os homens podem ser mais ou menos independentes e capazes de transformar suas sociedades. No entanto, se os homens podem produzir suas sociedades, só o podem porque são, antes, produzidos por elas. As sociedades só podem ser modificadas, portanto, se os homens, que as transformam, houverem aprendido a nelas viver, nelas reconhecerem-se, houverem minimamente incorporado seus modos de funcionamento, entendido as formas de conhecimento nelas presentes e por elas mesmas elaboradas.
É certo que este processo recíproco de dupla constituição do homem e sociedade não se realiza somente como uma anterioridade desta em relação àquele, sendo mais apropriado considerar este processo uma simultaneidade. Para a compreensão sociológica geral, contudo, a sociedade é anterior no sentido de que é uma condição para a formação da própria humanidade.
Nesta perspectiva, e isto deve ser devidamente realçado, por homem não se compreende uma espécie definida geneticamente, de cujas características resultaria sua consciência e comportamentos. A herança genética configura-se uma premissa para chegar-se à condição humana, seguramente indispensável, mas não uma propriedade suficiente. Também para a Sociologia – o que não seria substancialmente diferente para as demais disciplinas teóricas humanas -, o homem não poderia haver definido sua consciência e sua conduta, anteriormente à experiência social, por ser portador de uma “alma” ou “espírito” imaterial, como defenderiam as religiões, ou por uma suposta natureza “racional” essencial e prévia à existência corpórea, como sustentariam concepções que poderiam ser denominadas “metafísicas”.
E se o homem se caracteriza especificamente por sua razão ou consciência, e nisto se distingue de outras espécies, é porque esta capacidade de entendimento foi formada pela participação na sociedade. Sem a presença nesta, a própria condição humana não seria alcançada, pois não se chegaria a nenhum estado de consciência ou racionalidade, nem as condutas poderiam ser norteadas ou compreendidas por estas últimas. Não haveria, inclusive, como o homem alcançar a própria percepção de sua “humanidade” – esta, já, uma das tantas noções filosóficas construídas sobre a sua própria existência.
As formas de penar e agir humanas, não sendo um mero reflexo ou uma simples cópia das visões de mundo e práticas coletivas de uma sociedade, são, embora modificáveis, referidas, necessariamente, às formas de pensamento, ordenação e ação nela existentes, ou seja, em contextos coletivos mais extensos e mais antigos que os seus sujeitos tomados isoladamente.
A sociedade se apresenta, interfere e modifica o homem mesmo naquelas dimensões da vida que parecem mais naturais, produzindo o homem na medida em que este é inserido no meio social e aprende nele a viver.
Nenhuma idéia moral, por exemplo, que objetive, como é de sua natureza, orientar e julgar a validade de condutas dos indivíduos, conseguiria se formar na mente dos homens antes da influência dos ensinamentos dos que o antecedem e os cercam na vida social, fossem esses, também como exemplos, os pais, professores, irmãos, amigos, sacerdotes, juízes, mídias impressas ou eletrônicas ou quaisquer outras presenças pessoais ou impessoais que se encarregam da inserção e da preparação dos homens na vida social, num determinado tempo e espaço. A noção do que é certo ou errado como conduta e a sua consciência não é anterior e independente da sociedade, mas decorre do que determinada sociedade considera apropriado ou não para a sua existência.
O mesmo princípio do exemplo acima valeria para todos os tipos de práticas humanas. Assim, idéias e opções políticas, regras de etiqueta e de cuidados pessoais, a dedicação a crenças, o cultivo do gosto artístico, os hábitos alimentares, a realização de determinadas atividades esportivas ou a identidade com certos grupos, o aprendizado de formas de produzir e consumir economicamente, são todos estes também exemplos de práticas que caracterizam somente o homem, e nenhuma outra espécie, mas às quais nenhum homem chegaria senão pela influência, e não raro imposição, da sociedade.
Ocorre, contudo, que, a princípio, aqueles que entram no mundo social não são consultados a respeito de suas formas de pensar e agir já existentes, passando a elas a se submeterem. De início, ao menos, este processo funciona como um arbitrário, ou seja, como imposição daqueles que trazem, desde o nascimento, os seus indivíduos ao aprendizado social. Do contrário, fora do convívio e da preparação sociais, permaneceriam apenas seres naturais, sem qualquer consciência e identidade com qualquer forma de humanidade. Identidade, neste caso, caracteriza a condição em que um sujeito, submetido a um processo de configuração e influência social, por um lado passa a ser reconhecido pelo meio em que vive, por adquirir competências para nele operar, mas também formando uma auto-imagem perante este mundo.
A esse processo, pelo qual o ser natural que é substrato do homem se transforma efetivamente em ser humano, ou seja, se transforma de ser puramente natural em ser social, confere-se a denominação de socialização. Sem isto, não se formaria a consciência humana e os homens não adquiririam as capacidades que uma sociedade estabelece para dela pertencer, ao menos em parte, levando-se em conta que a integração a todos os meios de uma sociedade é um fenômeno cada vez mais raro e distante, dadas as suas crescentes complexidades.
Outro processo diretamente associado a este, sem o qual a própria socialização não se realizaria, é a educação. Nela estão contidas as atitudes sociais aqui reiteradas de preparação, aprendizado, configuração, condicionamento, influência, formação, como dimensões deste processo decisivo. Ela, a educação, é o meio que permite, organizada das mais diferentes formas, no tempo e espaço, não somente a passagem do ser natural ao social e ao homem, como, conjuntamente, a preservação da própria sociedade, seja conservando-a, seja modificando-a.
O processo de socialização, como já se mencionou, tende a ser mais absolutamente impositivo nas menores idades, e menos para as maiores idades, desde que estas já tenham passado por um processo mais extenso de preparação social, tendo aprendido a reconhecer o mundo em que vivem em seus hábitos, normas, gostos, modos de pensar e produzir, em suas relações de poder, entre outras dimensões. Esse processo é, contudo, incessante, efetivando-se enquanto o homem participa da vida social, e as possibilidades de alternativas quanto à conduta pessoal dependerá, em muito, da maior ou menor rigidez da própria socialização e da estrutura social em que esta repousa.
Em decorrência, se a condição humana variará, muito decisivamente, em função do nível de participação na sociedade proporcionado pelo processo de socialização, então as formas de educação e de distribuição dos seus ensinamentos a que estão submetidos os homens, definirão também em grande parte as possibilidades de sua existência num determinado universo social – sobre este ponto se retornará adiante em análise específica.
Outro pressuposto crescentemente incorporado à abordagem sociológica, este diretamente hoje compartilhado com a Antropologia e imediatamente vinculado à consideração precedente, é que os tipos humanos constituídos decorrem muito estreitamente dos tipos de sociedade a que pertencem. Esta visão nem sempre foi consensual na Sociologia, que no princípio importou uma visão universalista do homem, bem como uma visão naturalista. Hoje, contudo, ressalta-se o poder que as sociedades, pela socialização e suas formas educativas inerentes, detêm em produzir tipos humanos muito proximamente familiarizados com as formas assumidas pela própria sociedade.
A suposta originalidade que muitas vezes o homem isoladamente pretendeu, visão aliás muito enraizada nas culturas individualistas constituídas pela ocidentalização, cede lugar ao princípio da diversidade social, antes que da diversidade ou absoluta singularidade das pessoas.
Hoje se afigura como bastante evidente que as alternativas pessoais, quer dizer, a de poder constituir muitas e variáveis identidades, é maior em sociedades ditas complexas, aquelas que, por enquanto, poderíamos definir como formadas por estrutura diversificada e composta de muitas sociedades internas, mais ou menos distantes ou interpenetráveis. O contrário, ou seja, a constituição de identidades menos variáveis, deverá ocorrer em universos sociais menos mutantes, diversificados e menos dividido internamente.
Ser, entretanto, homem de uma sociedade ou de outra, ou contar com a possibilidade de um repertório mais ou menos variado de papéis e alternativas, depende decisivamente do meio em que se efetiva o processo de socialização. Neste caso, a visão antropológica ressalta, como se desenvolverá à frente, um processo de endoculturação.
A consciência e a conduta humanas tanto não são anteriores e indiferentes à presença formativa da sociedade sobre os homens, que diferentes arranjos sociais constituirão, historicamente, diferentes tipos de homens. Se os homens são produtores de relações, antes são produtos destas, mas de determinadas relações específicas. Estudar os homens sociologicamente, portanto, é estudar a natureza destas relações em suas formas, causas e sentidos. Aqui, trata-se não do estudo de uma genética biológica, mas de uma genética social 1, quer dizer, do processo de construção do homem em suas relações sociais, das quais se faz herdeiro e propagador. Desta maneira, como exemplo, um homem só poderia ser escravo numa sociedade que tenha instituído e/ou admitido a escravidão como uma forma de relação social, a qual deverá corresponder também uma consciência da aceitação da escravidão. Não poderia haver, em conseqüência, uma consciência da escravidão que inclinasse o homem a se auto-escravizar, se no universo social em que habita já não houvesse a escravidão.
Sem pretender-se estabelecer hierarquização de importância entre as áreas dos conhecimentos humanos, a Sociologia e suas pesquisas, na perspectiva do reconhecimento da diversidade das formações sociais, possibilitarão identificar raízes sociais profundas em problemas antes abordados somente na dimensão individual, fosse pela moral, religiões ou vertentes da psicologia e da medicina. Assim, condutas tidas como desviantes ou patológicas, não somente se referem a padrões de normalidade socialmente estabelecidos numa certa época e lugar, como mesmo muitas patologias podem ter sua origem em causas tipicamente sociais. É o que acontece quando tratamos de muitas formas de vício ou compulsões, ou com doenças recentes e muito freqüentes no nosso meio, como o stress ou a anorexia. Tratando-se de patologias classificáveis por sintomas orgânicos recorrentes, suas causas poderiam ser identificadas em determinados estilos de vida social. Não basta, portanto, afirmar-se que a sociedade é decisiva na formação do homem, mas que, seguindo-se a perspectiva da endoculturação e conseqüente diversidade cultural, a humanidade não é uma condição genérica, mas específica, também formada diferentemente no espaço e tempo, como expressões de diversas “humanidades”.
Repita-se que essas considerações introdutórias não supõem a idéia de acordo com a qual as sociedades não podem, essencialmente, ser modificadas pelos homens. Ao contrário, elas só podem ser mudadas justamente porque são compostas de homens, seres capazes de refletir, quer dizer, de distanciarem-se, compreenderem e voltarem-se sobre as suas próprias sociedades, sobre as realidades que os formaram. Só podem fazê-lo, todavia, a partir do conhecimento adquirido das formas de vida que a própria sociedade constitui e nas quais encontra-se inscrito; formas, estas, internalizadas com maior ou menor eficácia. E, portanto, a mudança humana só é extensa quando é social, superando a escala do indivíduo isolado, pois somente esta é capaz de reinventar consciências, estruturas e ações sociais, possibilitando também a constituição de outros tipos de homens.