domingo, 24 de maio de 2009

O POSITIVISMO DURKHEIMIANO

Para Émile Durkheim, o principal autor positivista após Auguste Comte, conhecer a sociedade, conforme expõe em suas “Regras do Método Sociológico”, consiste em conhecer seus Fatos Sociais, em suas configurações próprias e em suas articulações.
Fatos Sociais não são, para Durkheim, quaisquer acontecimentos, mas são Fenômenos Sociais. Estes, aproveitando da concepção positivista já desenvolvida por Comte e seguindo os princípios metodológicos da ciência moderna, são definidos por Durkheim como acontecimentos marcados pela constância e regularidade. Sendo este um pressuposto, todavia, os fatos ou fenômenos sociais são de uma substância diferente daquela identificada por seu antecessor, como se demonstrará adiante.
Conceitualmente, adotando-se as definições literais de Durkheim, Fatos Sociais podem ser definidos como toda forma agir, pensar e sentir coletiva que pode ou é capaz de exercer, sobre os indivíduos, uma coerção exterior.
Na realidade prática, acontecimentos que agreguem estes atributos e se efetivem de modo constante e recorrente, podem ser identificados como normas, regras, hábitos, crenças, costumes, sentimentos e valores comuns.
Para o reconhecimento dos Fatos Sociais, é necessário que sejam reconhecidos os seguintes componentes, de modo simultâneo:
Coercitividade: os fatos sociais são impositivos, obrigando indivíduos a determinadas condutas, queiram eles ou não. É a sociedade que as impõem aos indivíduos. Imposição, neste caso, não quer significar, portanto, qualquer forma de arbítrio que se verifique.
Exterioridade: não são os fatos sociais originados nos indivíduos, mas fora deles. Os fatos sociais são exteriores porque, antes de tudo, são anteriores aos indivíduos, como toda sociedade em relação aos seus membros.
Independência: as sociedades não podem ser consideradas diferentes agregações de indivíduos, cada qual com suas características peculiares. Ao contrário, os indivíduos são passageiros, já as sociedades permanecem. E estas só podem se preservar porque, estando acima e fora dos indivíduos particulares, seus fatos são independentes destes seus membros, que são passageiros. Assim, as sociedades ficam e os indivíduos passam.
Generalidade: Os fatos sociais são gerais. Isto quer dizer que não são particulares ou pessoais, nem universais. Em primeiro lugar, significa afirmar que os fatos sociais são coletivos, ainda que possam se manifestar individualmente em momentos e situações diferentes em que se encontrem os indivíduos. Em segundo, não sendo os fatos sociais universais, significa que variam de sociedade para sociedade, de acordo com o tempo e o espaço – social – em que se realizam. Diferentemente do que defendia Comte, os fatos sociais, embora regulares, não seguem eternamente a mesma uniformidade, nem são completamente previsíveis e, então, não são universais. Os fatos sociais variam conforme tipos de sociedades determinadas. Quer dizer que cada sociedade tem suas regras, crenças, hábitos, costumes, sentimentos e valores coletivos próprios, que é, aliás, o que faz com que os tipos sociais sejam diferentes.
Objetividade: os fatos sociais, por serem exteriores aos indivíduos, constantes e regulares, podem se constituir em objetos de pleno entendimento e constatação, independentemente das inclinações subjetivas dos investigadores, tal como se pode fazer com os objetos de estudo das ciências naturais, os fenômenos naturais. Isto não quer dizer que os fatos sociais são naturais, mas sim que, seguindo o princípio metodológico do positivismo, podem ser compreendidos com o grau de certeza destes, porque podem, em razão daqueles atributos – constância e regularidade – serem inteiramente descritos em suas características específicas.
Fatos sociais, como para toda abordagem científica, seriam “coisas” ou dados, acontecimentos perfeitamente identificáveis.
Destas definições, outras conclusões sobre o campo de estudo da sociedade são extraídas pelo autor, correspondendo ao seu ponto de vista paradigmático dentro da teoria sociológica.
Em primeiro lugar, note-se que o empreendimento de delimitação de regras que assegurassem a pesquisa sociológica encontra-se estritamente dentro dos pressupostos do método positivista, o que faz com que o autor tenha se destacado como o principal dos teóricos quanto à consolidação deste paradigma de interpretação social. Sendo assim, “As Regras do Método Sociológico” expõem didaticamente os caminhos para a aplicação do método científico das ciências da natureza à sociedade, o que caracteriza o positivismo por definição.
A seguir, realce-se que, neste empreendimento, ao passo em que busca criar condições para a realização de análises com o máximo rigor metodológico, Durkheim acrescentou contribuições particulares que tanto diferem de apreciações antecedentes do positivismo, como adicionou novos conceitos e percepções sobre a análise sociológica, que favoreceriam a consolidação deste campo de estudo.
Entre essas contribuições encontra-se a distinção do caráter especificamente social que concerniria à abordagem sociológica. Quer Durkheim afirmar com isto que à Sociologia cabe o estudo de fenômenos coletivos, sendo estes criados, mantidos ou modificados pelos próprios homens. Não se poderia mais buscar explicações sobre acontecimentos sociais, a partir de características, presumivelmente, psíquicas ou biológicas. Para estas dimensões haveria a psicologia e a biologia, que, contudo, não poderiam explicar fatos relacionados às formas coletivas de viver criadas pelos homens.
Nessa esteira, compreender a sociedade significaria analisá-la como um conjunto de fatos sociais que a compõem. Fatos que, então, jamais seriam naturais, mas sim sociais, diferentemente do que fora sustentado, inclusive, por Comte. Social, para Comte, diria respeito ao caráter de representação coletiva dos fatos sociais, ou seja, estes seriam culturais, modos de ver sociais, que fariam sentido para determinadas sociedades, em determinado tempo e espaço. E, enquanto existentes, se imporiam de modo constante e regular.
Os fatos sociais também seriam fatos morais. A moral não é considerada, neste caso, uma disposição do indivíduo, mas uma necessidade de toda sociedade. Os fatos sociais seriam morais, justamente porque seriam impositivos. Assim são as crenças, as regras, as normas, os hábitos, os costumes, os sentimentos e valores comuns. O caráter de imposição é o que há de mais semelhante entre estes fatos. E, se não fosse assim, para Durkheim, as sociedades não se manteriam, já que estes fatos servem para manter a harmonia e a coesão sociais. A existência humana, diferentemente do que preconizaria um discurso de matriz iluminista, não decorreria de sua liberdade, mas ao contrário, da evidência de que o homem é resultado dos princípios que aprende por obrigação, não por opção. Neste caso, a preservação social e pessoal tomam o lugar da liberdade como elemento ideológico a ser valorizado. Por isto, para Durkheim, a sociedade é uma “entidade moral”, já que se compõem de um conjunto de fatos sociais.

Os fatos sociais, que em seu conjunto configuram a sociedade, não servem, não obstante, somente para preservá-la e reproduzi-la. Os fatos sociais, ao se imporem, revelam seu caráter educativo e, por sua vez, para Durkheim, este caráter educativo é necessariamente impositivo ou “moral”. O papel da educação que, na concepção do autor, é realizada de modo hierárquico, das gerações mais antigas sobre as mais novas – e nunca ao contrário – cumpre o papel de socialização impositiva, formando o ser social de acordo com as disposições da sociedade. Em conseqüência, a educação nunca contém função transformadora, mas só conservadora e reprodutora, porque serve para criar e manter sujeitos sociais de acordo com os fatos sociais existentes. Somente quando mudam as sociedades, por decisão coletiva destas, é que muda a educação, acompanhando as mudanças sociais, para fixá-las.
Em consonância com as visões de mundo cartesiana e comteana, para Durkheim a sociedade seria um corpo orgânico de funções. Nesta perspectiva, embora recusando uma abordagem naturalista, o chamado “funcionalismo” deste autor é herdeiro íntimo das concepções mecanicistas e organicistas do mundo. Desta feita, aprendemos, pela imposição dos fatos sociais, a desempenhar funções. Estas estão representadas pelas Instituições. E todo fato social é uma instituição, ou seja, torna regular e constante nossas condutas, num certo universo social. As instituições é que nos condicionam à determinadas condutas, sempre de sentido moral, incorporando este papel educativo, ao mesmo tempo que assegura o controle e a cooperação, ou solidariedade, entre os indivíduos.

domingo, 10 de maio de 2009

O POSITIVISMO COMTEANO

A concepção de uma ciência específica da sociedade, a Sociologia, aparece com o Positivismo, assim exposto na obra de Auguste Comte (1798-1857), “Curso de Filosofia Positiva”.

O Positivismo é uma resposta intelectual às condições vividas pelas sociedades européias que sofriam os impactos da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Essas sociedades assistiam ao desenvolvimento do capitalismo industrial, com a formação de suas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. Este capitalismo nascente, entretanto, contrariando os ideais de justiça e igualdade que haviam guiado, ideologicamente, a superação econômica e política da sociedade feudal, produzia novas e gritantes formas de desigualdade. O trabalho social não gozava de proteção e de regras de limitação ao seu uso. Situações de miséria e de precárias condições de habitação, com suas conseqüências sociais e individuais, também caracterizavam as novas cidades, sem recursos e infra-estrutura para absorverem as grandes migrações do campo.

Paralelamente a essas condições, mantinham muita força as idéias iluministas, com seus desdobramentos na formação de doutrinas revolucionárias. A um tempo, estas se nutriam dos conflitos sociais e os alimentavam, particularmente aqueles de natureza de classe que, então, tendiam à grande oposição entre burguesia e proletariado.

O Positivismo faria o diagnóstico da situação de desorganização por que passavam essas sociedades, atribuindo-a, igualmente, à propagação das idéias iluministas, que se pautavam pela defesa de princípios como os da igualdade, racionalidade e liberdade dos indivíduos e cidadãos. Ou seja, idéias críticas, no sentido de “negadoras” da sociedade anteriormente existente, mas também da nova sociedade industrial em formação.

Na definição de Positivismo, compreende-se o objetivo de “reorganização” que esta doutrina pretendia para uma sociedade sacudida por desequilíbrios econômico-sociais e conflitos políticos: o da instituição de um enfoque “positivo”, reconstrutor, em lugar de uma mentalidade “negativa”, que seria própria do Iluminismo. O pensamento positivista era simpático à pregação ideológica dos conservadores, que defendiam o retorno à “comunidade”, com a valorização de uma estabilidade baseada na forma hierárquica de organização, na família patriarcal tradicional e nos valores religiosos do catolicismo. Considerava, entretanto, que os progressos econômicos e científicos trazidos pelas duas grandes revoluções eram incontornáveis e desejáveis, diferentemente do pensamento conservador, de quem aproveitava o princípio da ordem hierárquica.

Para o Positivismo, as sociedades européias haviam sofrido uma mudança demasiado brusca de suas instituições, o que contrariaria a lógica própria e interna de seu desenvolvimento – assim como de qualquer outro organismo -, a do desenvolvimento evolutivo lento, sucessivo e progressivo. Essas sociedades, sem uma mentalidade que lhes desse coesão e desprovidas de fundamentos ideológicos e institucionais das sociedades anteriores, encontravam-se em estado de desequilíbrio, “patológico”.

Tratava-se, para Comte, de elaborar uma forma de pensamento capaz de restabelecer a ordem e o progresso, características que seriam normais e naturais a todas as sociedades. Inicialmente, o autor emprestava o nome de “física social” à nova ciência. Fazendo analogias a princípios da própria física, a ordem corresponderia à estática, e o progresso, à dinâmica.

O Positivismo sustentava que, de modo idêntico ao procedimento das ciências naturais e exatas, dever-se-ia conhecer os fenômenos formadores da realidade social, reconhecendo-se o que seriam as suas leis de funcionamento e evolução. A atribuição de um caráter científico ao saber social seria uma necessidade da evolução, também natural. Evolução, na perspectiva comteana, deveria ser compreendida um processo de aperfeiçoamento lento do organismo social, de passagens sucessivas de situações de menor para a maior complexidade. Esse caráter científico substituiria as explicações metafísicas e religiosas que ainda predominavam a respeito das sociedades, seguindo o curso das outras ciências, que também haviam logrado superar as explicações carentes de comprovação.

O conceito de Positivismo corresponde à afirmação de um conhecimento que possa ser exato e comprovado sobre a realidade social, tal como os conhecimentos extraídos pelas ciências da natureza. O Positivismo comteano, então, sustentava a necessidade de aplicação do Método Científico, já utilizado nestas ciências naturais, à compreensão da realidade social. E não poderia ser de outro modo, já que a sociedade seria parte de um organismo natural superior, requerendo o uso deste mesmo método, baseado na observação e análise sistemáticas, até sua certificação objetiva, ou seja, constatável de modo regular na realidade exterior aos indivíduos.

Dessa forma, o Positivismo, servindo-se da Sociologia como disciplina científica, buscaria a compreensão de fenômenos sociais, que seriam tipos específicos de fenômenos naturais, marcados por suas regularidade e constância. Deste modo, acontecimentos que fugissem a este padrão fugiriam ao funcionamento ordenado da natureza, devendo ser corrigidos. O papel da Sociologia seria o de uma espécie de “medicina social”, de caráter de restituição e retificação da ordem, configurando-se, no seu princípio, num saber de natureza conservadora.

Para Comte, o conhecimento da sociedade, organismo natural e em evolução, ou seja, em constante processo de progresso, aperfeiçoamento e complexidade, seria reduzido à constatação de regularidades presentes nos fenômenos sociais, que corresponderiam às suas partes funcionais e ajustadas, às suas instituições. A compreensão racional da sociedade estaria representada pela sua percepção científica convencional, reduzida à constatação de – presumíveis – regularidades atuantes nestes fenômenos sociais – ou instituições.

Resulta destes pressupostos que a sociedade seria um organismo, idéia tributária da visão cartesiana do mundo como uma ordem mecânica. Primeiramente, a sociedade só existiria se fosse uma ordem, ou seja, um conjunto em consenso e harmonia. E uma ordem orgânica, a interdependência de órgãos ou instituições de que os homens participariam, cada qual exercendo funções, quer dizer, papéis anteriormente prescritos. O homem, por sua vez, jamais seria a origem da sociedade ou protagonista de sua existência. Ao contrário, seria um resultado da natureza social e física pré-existentes, destituído de autonomia.

Em oposição às idéias iluministas, em geral, e ao liberalismo, em particular, os princípios da cidadania e das liberdades naturais dos homens seriam destrutivos da sociedade, pois fortaleceriam o egoísmo inerente à condição humana, em detrimento de sua natureza também altruísta. O homem não seria, nem deveria ser livre, mas cooperativo de uma ordem superior, que então lhe asseguraria a preservação individual e coletiva. O dever, por sua vez, deveria substituir o direito. Uma vez que todos obedecessem aos seus deveres sociais, tornar-se-ia dispensável a reivindicação de direitos.

O Positivismo, contudo, não seria defensor da igualdade, ao contrário. Todo organismo natural constituiria uma hierarquia e, portanto, o desempenho de funções mais e menos relevantes. Estas funções não deveriam ser substituídas, nem confundidas. Como paradigma, do mesmo modo que, na vida feudal, às elites morais e intelectuais composta dos senhores e do clero deveria ser confiada a direção do mundo social, e aos servos, classes laborais, somente o trabalho manual e material; na sociedade industrial moderna, de modo semelhante, a direção deveria ser atribuída aos industriais e aos cientistas, enquanto o trabalho, exclusivamente, aos proletários. A propriedade de bens seria também natural e desigual, assim como a dominação. O desenho do mundo social não seria a do equilíbrio entre iguais em poder e riqueza, mas de um universo harmônico de desiguais, com deveres de proteção mútua e repartição desigual da riqueza e propriedades. Imagem esta apropriada por Comte da ordem na vida feudal. Só que, neste caso, a favor da afirmação da sociedade industrial existente, que deveria ser confirmada e conservada pela Sociologia.

À Sociologia, que principia, na elaboração de Comte, conservadora, caberia o papel de descobrir as leis da natureza social e da sua evolução, atuando, tal qual a medicina, como antes mencionado, na correção das disfunções dos seus organismos, objetivando a perpetuação da ordem hierárquica da sociedade. Daí, também as características especificamente naturalista, organicista e evolucionista do Positivismo de Comte.

Essa intervenção corresponderia à evolução do que Comte denominava “Espírito Positivo”, que representaria a racionalidade humana. A idéia de evolução estaria concretamente relacionada à evolução para um Estado Positivo, em que a realidade poderia ser “empiricamente demonstrada”, que coincidiria com a Sociedade Industrial. Este seria o último estágio da evolução humana, pois completamente amparado no saber científico, o único saber verdadeiro, para Comte, em lugar da ilusão das crenças ou da metafísica.

Segundo essa visão evolucionista da história, o Espírito Humano progrediria segundo a “Lei dos Três Estágios”: O Estado “Teológico-Fictício”, nas formas do fetichismo, politeísmo e monoteísmo, em que se recorre à explicação pela imaginação do sobrenatural; o Estado “Metafísico Abstrato”, que explicaria os fenômenos por forças ocultas e imateriais, destinadas a realização de grandes ideais humanos; e o Estado “Positivo-Científico”, em que os fenômenos seriam explicados por leis empiricamente demonstradas, que dizer, demonstradas na própria realidade.

sábado, 2 de maio de 2009

PRINCÍPIOS DO LIBERALISMO

O Liberalismo é a mais genuína doutrina do capitalismo ocidental e, até nossos dias, pode-se afirmar que preponderante. Mais que isto, o Liberalismo demonstra seu enorme vigor e profundidade na estruturação de relações sociais no processo em curso geralmente denominado globalização, justificando e orientando suas principais práticas econômicas e políticas. A força recente demonstrada pelo Liberalismo, ademais, não reside somente no fato de representar interesses e estratégias do capitalismo global, mas também na sua profunda incorporação em estilos de vida, identidades e aspirações dos indivíduos da contemporaneidade. Não somente estes fatos tornam obrigatório o estudo do Liberalismo e de suas influências, pela Sociologia, mas a evidência de que as principais correntes formadoras deste campo de conhecimento, necessariamente, com ele estabeleceram interlocução, e regra geral demarcando diferenças e oposições teóricas. O que se realça nesta abordagem, então, são os fundamentos teórico-ideológicos do Liberalismo “clássico”, de substrato econômico, que não deixaram de ser pressuposto, mesmo que parcialmente, tanto para as teorias e práticas liberais atuais, como para alternativas liberais de ênfase social e política.

O Liberalismo demonstra essa enorme resistência no tempo, certamente, pela vinculação muito estreita com as características mais típicas do modo de produção capitalista, especialmente daquelas relacionadas à emergência de sua forma industrial. Neste contexto, orientou decisivamente a elaboração, representada, sobretudo, pelos “economistas clássicos”, de uma “ciência econômica”, e cumpriu, como ainda hoje cumpre, o papel ideológico de legitimação e “naturalização” da economia capitalista industrial em expansão, como se esta viesse a corresponder a uma forma econômica historicamente necessária. Não sendo, também, a única doutrina a representar este modo de economia, o Liberalismo também se destacou como a principal força intelectual a favor da liberalização das relações de mercado contra os monopólios comerciais, que não raro contaram com a proteção do Absolutismo.

Outro que fator que colaborou para a legitimação social e política do Liberalismo, embora nem sempre com muita propriedade, foi a alusão às virtudes políticas e morais da liberdade individual, diretamente tributárias do ideário iluminista, tais como os da liberdade e dos direitos naturais do homem, as liberdades de associação e de pluralidade política, a liberdade de imprensa, além do constitucionalismo e do republicanismo. Pode-se observar, contudo, que se este ideário é capaz de despertar fascínio e fazer-se meio de exercício de poder, está longe de se configurar suficientemente na Modernidade, cumprindo literalmente o papel de ideologia, embora com enorme poder de estruturação das instituições e identidades próprias do mundo capitalista. Tampouco nem todos os autores do Liberalismo foram ou são integralmente defensores dos mencionados princípios. Muito ilustrativamente, alguns dos mais reconhecidos economistas liberais, clássicos ou contemporâneos, os desconsideraram ou os subsumiram sob as necessidades de reprodução do mercado e das formas de propriedade que lhe dão sustentação, bem como das relações desiguais que lhes dão suporte.

Dentre as definições mais características sobre a natureza e o sentido da sociedade, num sentido amplo, o Liberalismo clássico ampara sua visão de mundo em pressupostos de relativamente fácil entendimento.
O homem seria, por natureza, diferentemente do que propugnara a filosofia dominante até então, um ser econômico, necessariamente assentado numa dimensão individual. Deste modo, cada indivíduo, como produtor e responsável pela satisfação de suas necessidades, buscaria o bem-estar pessoal, consubstanciado na liberdade de aquisição de riquezas próprias, ou, traduzindo-se de outro modo, na constituição e manutenção da propriedade privada. Ontologicamente (quanto ao ser em si), o homem, portanto, estaria previamente definido por um individualismo possessivo, egoísta e utilitário sobre coisas e pessoas, aquisitivo e acumulador de riquezas. Nada disto, portanto, seria compreendido como defeito moral, mas como virtude, inclusive porque, segundo este primado, plenamente de acordo com a natureza humana. Em última instância, a felicidade, reduzida às possibilidades de ganhos materiais, seria um atributo da própria vontade individual. O sucesso ou insucesso seriam decorrências da iniciativa individual, não das desigualdades econômicas e das condições sociais pré-existentes, desde que fosse o homem livre. Esta concepção sugere tanto o “self made man”, a auto-realização, como o princípio da auto-responsabilização do homem pelo seu destino. Bem entendido, para esta concepção liberal, não seriam o egoísmo, a possessividade e o utilitarismo humanos, conseqüências do sistema de concorrência, senão que o contrário, este seria o resultado obrigatório daqueles atributos presumivelmente naturais. Em suma, cada qual cuidando do seu bem-estar próprio, explorando sua “livre iniciativa”, contribuiria para o bem-estar geral.

A sociedade se configuraria, então, como um conjunto de sujeitos econômicos, detentores da propriedade privada de seus bens e força de trabalho, considerados produtores e consumidores independentes, cuja racionalidade estaria orientada para a compra e venda de produtos e de si em um Mercado, cada qual munido de suas capacidades. O trabalho não seria concebido como atividade propriamente coletiva.

O Mercado se revestiria da condição de origem e finalidade de toda atividade social, neste caso, de toda relação entre indivíduos, constituindo-se como lugar da realização coletiva e de coordenação natural dos agentes econômicos privados. No Mercado se materializaria o poder de auto-regulação econômica entre os produtores e consumidores privados, funcionando, nos termos do exposto quanto à economia por Adam Smith, como uma “mão invisível”. Nestes termos, contudo, o Mercado se ergueria como a grande instituição orientadora e sancionadora das relações econômicas. Destas, por vez, produzir-se-ia também uma racionalidade harmonizadora perfeita das relações sociais e políticas, deste que ausentes intervenções indevidas de grupos ou do poder social constituído.

No Mercado repousaria a essência das relações sociais, de acordo com a natureza econômica do homem, uma vez que consistiria na “livre concorrência ou competição” entre agentes econômicos privados, dotados de “livre iniciativa”, em torno justamente do que haveria de mais essencial à vida humana, ou seja, a produção dos bens necessários à satisfação se suas necessidades, convertidos em mercadorias (valores de troca representados quantitativamente por dinheiro), tal como o homem. Este, medido pela abstração do dinheiro, realizaria o seu ser “ser” nas possibilidades do seu “ter”.

No plano político, o Estado, também como instituição vista como natural, justificaria sua existência no imperativo de resguardo da propriedade privada e, particularmente, das relações de concorrência econômica entre os agentes privados, já que esta constituiria o meio legítimo de acumulação e de repartição das riquezas privadas, devendo ser protegida pela lei. Não obstante, esta proteção, que redundaria na perda momentânea de alguns, em favor do correspondente ganho de outros, preservaria o mecanismo da concorrência como indutor de compensações progressivas, assegurando, em última instância, o ganho ampliado de todos. Assim, o fracasso no jogo competitivo seria também positivo ao crescimento econômico e à felicidade geral, uma vez que impediria a acomodação e impeliria à busca de novas explorações de mercado por parte dos malogrados.

A propriedade privada de bens e de trabalho, que possibilitasse e impulsionasse a ação econômica particular ou individual na forma de pessoas ou empresas na produção, consumo e troca, figuraria como um requisito indispensável ao postulado da busca natural pela auto-satisfação econômica. Liberada e defendida pelo Estado, a propriedade não somente asseguraria a liberdade do indivíduo, a condição do homem evitar a servidão e a escravidão, nos termos do que já fora defendido por John Locke, mas o princípio da contratualidade entre indivíduos como a forma de ordenação social por excelência, que preservaria tanto o bem-estar pessoal, como o coletivo.

Ao Estado caberia então um papel limitado, mas indispensável, nesta ordem, como instituição sempre coexistente à sociedade. Quanto mais se aproximasse de um tipo “puro” ou modelar o capitalismo e o Liberalismo que lhe representasse, mais deveria ser esta instituição governante um “Estado Mínimo”. Compreenda-se “mínimo” não como fraco, mas sim como resumido ao “mínimo” papel de todo Estado, qual seja, a manutenção das relações sociais existentes pelo uso da força física. Um “Estado policial”, em síntese. De acordo também com uma moldagem modelar, este Estado não poderia ser regulador, planejador ou interventor na economia, muito menos empreendedor, além de descartar o papel de provedor: a ele não caberia promover políticas sociais, como as de saúde, educação e previdência. O uso e o consumo destes bens sociais, também convertidos em mercadoria, deveria se efetivar de acordo com as escolhas e possibilidades dos homens livres para produzir e empreender. O Estado deveria se encarregar, tão somente, da ordem vigente, quer dizer, da propriedade privada e da livre concorrência.

Ao Estado caberia, por extensão, a conservação da propriedade privada e do princípio concorrencial da troca monetária, contra qualquer tipo de contestação de classes e injunção perturbadora desta dinâmica. Ao menos discursivamente, o Liberalismo se notabiliza pela recusa em adotar medidas que favoreçam grupos ou monopólios, devendo atuar precisamente para evitá-las, cerceando impedimentos à livre-concorrência. Mesmo que entre desiguais, o princípio do “lassaiz-faire” (livre fazer) deve ser resguardado, para que os homens possam livremente dispor de suas capacidades e progredir. Para os liberais, não é a livre concorrência entre indivíduos e empresas que gerariam desigualdades, mas as intervenções de grupos ou instituições que pudessem molestar esta liberdade.







Alguns dos Principais Clássicos Teóricos Liberais:

LOCKE, John. O Segundo Tratado do Governo Civil, 1689/90.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, 1776.

MALTHUS, Thomas. Ensaio Sobre o Princípio da População, 1798.

RICARDO, David. Princípio da Economia Política e da Taxação, 1817.

TOCQUEVILLE, Aléxis. O Antigo Regime e a Revolução, 1848.

HAYEK, Frederick von. O Caminho da Servidão, 1944.