sexta-feira, 12 de junho de 2009

O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO

A Teoria Marxista se constituiu e ainda se afigura como um dos grandes paradigmas do pensamento sociológico. Constituindo-se numa forma de pensamento complexo, a Sociologia dele se apropriou, como outras disciplinas, retirando-lhe tanto categorias gerais de interpretação do fenômeno da sociedade, quanto contribuições decisivas para a compreensão da Modernidade.
O Materialismo Histórico e Dialético ou, simplesmente, o Materialismo Histórico, como é denominada a teoria de Karl Marx, resultou de diversas fontes de análise e de crítica, em particular a filosofia alemã herdeira do hegelianismo, a economia política clássica e a política revolucionária francesa da segunda parte do século XIV. Como legado, o marxismo deixou não apenas o ponto de vista do materialismo histórico da interpretação, mas, diretamente vinculado a este, a análise da formação das sociedades de classes e sem classes, a mais ampla identificação das características do capitalismo, a partir da formulação de sua teoria do valor-trabalho, e as teorias da ideologia e da alienação.



O Materialismo Histórico e a Formação dos Tipos Sociais

No Manifesto Comunista, Marx expõe o princípio que, para muitos intérpretes, sintetiza a teoria do materialismo histórico, segundo o qual a História, até os dias atuais, teria sido a História das Lutas de Classes.
A afirmação, que necessita ser compreendida sob vários aspectos, permite introduzir o problema da natureza das sociedades, de evidente relevância sociológica, e identificar o núcleo da abordagem materialista histórica que possibilita não somente a crítica do capitalismo e de outras formações sociais, como ampara teórica e metodologicamente a teoria sobre o comunismo que adviria do capitalismo moderno.
Em primeiro lugar, essa história a que Marx se refere, diferentemente do que pode parecer, não é toda a história e a de todos os povos, senão que é a história que fora contada pelo pensamento de que a Modernidade tornou-se tributária, ou seja, do Ocidente Europeu, que se destaca, entre outros aspectos, pelo fato de haver sido a história de diferentes sociedades de classes. Não obstante, Marx já reconhecera e teorizara, noutra perspectiva, que mesmo as sociedades de classes, em algum ponto de sua origem, foram sociedades sem classes; que coexistiram aos diversos tipos de sociedades ocidentais de classes, sociedades sem classes; e que, produto da luta de classes, o “motor” daquela história, o homem construiria uma nova história, a história de sua liberdade, ou seja, a história de um mundo sem exploração e sem desigualdades. Deste modo, para Marx, as sociedades de classes, marcadas pela diferença econômica, não eram fenômenos naturais, mas fenômenos sociais e transitórios, como outros componentes da vida coletiva.
De início, portanto, estas considerações sugerem duas condições gerais para a vida coletiva: sociedades de classes, em que se verifica a desigualdade econômica, e as sociedades sem classes, que corresponderiam a sociedades de igualdade econômica.
Nem todas as sociedades de classes são historicamente as mesmas, assim como as sociedades sem classes. Ambos os tipos, contudo, trazem fundamentos, respectivamente, em comum.
Para que existam classes sociais, é necessário que exista, como pressuposto, alguma forma de propriedade privada dos meios de produção. Quando privada, a propriedade não é comum a todos, nem pública, mas de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Meios de produção, por sua vez, são aqueles meios ou bens constituídos de lugares, instalações, instrumentos, e outros bens extraídos da natureza e usados na produção, em qualquer de suas etapas, que servem à produção dos bens que são consumidos pelos homens. Meios de produção podem ser, só como exemplos, a terra e seus instrumentos, fábricas, laboratórios ou consultórios, empresas de comunicação, meios que, enfim, possam servir à satisfação de necessidades humanas, que se modificam com a própria história produzida pelo homem.
As classes sociais são formações econômicas, porque estão diretamente vinculadas à atividade coletiva humana de produção e consumo de bens. Classes sociais, para o marxismo, não se referem a qualquer outra categoria social. As classes existem, e a distinção de posses econômicas que as acompanham, em razão da posição que indivíduos ocupam quanto à condição de proprietários ou não proprietários dos meios de produção. Classes são, em síntese, conjuntos de proprietários ou não proprietários dos meios de produção.
Sendo assim, sociedades de classes são desiguais, porque é desigual a propriedade dos meios sociais que servem à produção das necessidades humanas. A finalidade da apropriação privada dos meios de produção, aliás, não é outra senão a possibilidade da distribuição desigual dos bens produzidos, a favor dos proprietários privados dos meios de produção.
A propriedade dos meios de produção sob domínio de um certo número de indivíduos, que constituem uma classe de proprietários, permite a eles a exploração dos não proprietários. Estes, por sua vez, por não serem detentores dos meios de produção necessários à satisfação de suas necessidades, são obrigados a entregar a sua força de trabalho aos proprietários. Regra geral, não proprietários equivalem à condição de trabalhadores. As sociedades de classes, portanto, criam uma divisão entre a propriedade dos meios de produção e o trabalho. A este processo, pelo qual alguma forma de propriedade privada é usada para extrair parte da riqueza produzida pelo trabalho alheio, pode denominar-se exploração. Significa a exploração a subtração de parte da riqueza produzida pelo trabalhador, não para si e seu sustento, mas para o proprietário privado, que o obriga ao trabalho no seu meio de produção particular. Daí decorre a desigualdade: a acumulação de parte da riqueza, por parte da propriedade privada, produzida pelos trabalhadores, enquanto que com estes permanece somente parte de sua riqueza produzida, quando não em proporção somente suficiente para sua reprodução física ou mesmo abaixo disto.
A causa da desigualdade é a exploração e a causa desta, por sua vez, é a propriedade privada dos meios de produção. Historicamente, a exploração pôde se suceder de diferentes formas. Nas sociedades ocidentais, Marx identificou como as principais o trabalho escravo, o trabalho servil e o trabalho assalariado. De uma forma ou de outra, seja pelo trabalho cativo, seja pela dependência feudal, seja pela necessidade de vender sua força de trabalho para sobreviver, a propriedade se utilizou e se utiliza de determinadas relações de produção, tais como estas, para subtrair riqueza do trabalho alheio.
A condição para uma sociedade sem desigualdade e sem exploração e, portanto, sem divisão de classes, seria uma sociedade sem propriedade privada dos meios de produção, ou seja, em que esta propriedade fosse comum. O que equivale afirmar-se que uma sociedade assim é sem propriedade, pois esta, por definição, é privada. A isto corresponde, em contraposição às sociedades de classes, o comunismo: uma sociedade em que se elimina a desigualdade, a exploração e as próprias classes sociais, porque nele vigora a propriedade comum dos meios de produção. Ou, de outra forma, o uso em comum e igualitário, com a respectiva distribuição também igualitária de bens, dos meios de produção necessários à satisfação das necessidades humanas. Comunal é a sociedade, independentemente dos tipos de meios de produção empregados, que se baseia na propriedade ou no uso em comum dos meios de produção e que é, conseqüentemente, ausente de classes sociais. O comunismo, para Marx, significa o fim da divisão da propriedade e do trabalho, bem como da desigualdade na distribuição entre trabalho intelectual e manual, pois todos os indivíduos seriam, simultaneamente e em comum, usuários e beneficiários em comum e igualitariamente dos meios de produção.
As relações comunais ou comunistas de produção consistiriam, em resumo, no compartilhamento em comum dos bens de produção, do trabalho e da riqueza produzida, em proporção equivalente às necessidades de cada indivíduo. A propósito, de modo radicalmente diverso do capitalismo, não somente não haveria mais classe ou desigualdade social, como a produção não se voltaria à acumulação lucrativa, medida por valores quantitativos – o valor de troca - e representada pelo dinheiro, mas seria orientada para a satisfação de necessidades comuns estabelecidas pelos próprios homens.
Em complemento, caberia destacar que, diferentemente do que é insistentemente divulgado vulgarmente sobre o assunto, o comunismo representaria não somente o fim da propriedade privada e da desigualdade, mas também de todas as formas de Estado. Para Marx, só precisam de Estado as sociedades de classes. Por Estado, deve-se compreender uma organização, muito variável historicamente em forma e em dimensão, que concentra os meios de coerção violenta, os meios armados, e que servem à proteção de alguma forma de propriedade privada e exploração vigente. Numa sociedade comunista, ou seja, sem propriedade privada e exploração, o Estado se tornaria desnecessário, pois não mais necessária seria a proteção da propriedade privada de bens. O Estado, que representaria um governo externo à sociedade, em favor da propriedade privada, daria lugar a um auto-governo coletivo de homens livres do jugo da propriedade e com possibilidades iguais de determinarem o curso de suas vidas coletivas. A emancipação do homem estaria representada pela emancipação em relação à limitação da liberdade e à exploração impostas pelas formas de propriedade privada e em relação às formas de Estado existentes para assegurar os diferentes tipos de dominação de classes.
Ao lado do Estado, então compreendido como meio de dominação de classes pela via da violência, Marx vê vigorar a Ideologia. Essa noção, a princípio, foi usada para criticar o caráter de pensamento dominante realizado pela maior parte das idéias filosóficas alemãs de sua época, para depois assumir o caráter de um conceito crítico. Não sendo sinônimo somente de um conjunto indeterminado de idéias, Ideologia, para Marx, constituiria uma “falsa consciência da realidade”, um conjunto de idéias ou representações falsificadoras sobre as relações sociais vividas. Pela Ideologia, a maioria aceitaria como gerais, naturais e válidas, idéias que correspondem ao interesse das minorias proprietárias dominantes. A Ideologia configuraria o outro lado da dominação, exercido, neste caso, pela persuasão e pela educação de determinados modos de ver a realidade e nela se inserir, contando com a participação do próprio dominado. Exemplos de conteúdos ideológicos aceitos por sociedades de classes, durante grandes períodos, foram os de que a cidadania caberia somente aos que fossem considerados humanos; ou de que os homens se submetiam à servidão de outros homens, para assegurar a salvação perante Deus, seu maior senhor; ou de que o trabalho nunca degrada, somente dignifica, ou que o bem-estar e o progresso pessoais dependem somente do indivíduo, independentemente das condições sociais estruturadas.
A existência de classes sociais envolveria uma situação de luta historicamente incontornável, entre as classes dominantes, aquelas que são proprietárias, e as dominadas, não proprietárias. A dominação, da qual o Estado participaria como elemento auxiliar de defesa, corresponderia, antes de tudo, à dominação dos detentores da propriedade dos meios de produção sobre os não proprietários. Tratar-se-ia de uma relação de complementaridade contraditória. Se uma classe não existiria sem a outra, ou seja, não poderia haver escravo sem senhor de escravo, servo sem senhor feudal, nem proletário sem burguês, também as classes dominantes se encontrariam em situação de permanente luta e oposição em relação às dominadas, situação não eliminável enquanto coexistissem. Isto porque a razão desta luta e oposição se encontrariam justamente na propriedade dos meios de produção, controlados privadamente. Sendo a luta de classes a luta das classes não proprietárias contra a exploração e a desigualdade, ela é a luta, essencialmente, contra as sua causa, ou seja, a luta contra a propriedade privada que as submete à condição de classes trabalhadoras dominadas e exploradas.
Nesta perspectiva, a época moderna era encarada por Marx de modo otimista, como uma grande oportunidade histórica para o estabelecimento de uma sociedade sem classes ou comunista, a partir da formação anterior de um capitalismo de dimensão mundial.
O ponto de vista do chamado “socialismo científico” de Marx sustentava que essa era uma tendência da organização material assumida pelas sociedades capitalistas, que ensejariam o comunismo que lhe sucederia. Conforme o autor, o capitalismo tenderia a simplificar o antagonismo ou oposição de classes, propiciando o fim da exploração na história futura sucedânea do capitalismo. Isto porque, ao mercantilizar amplamente o mundo e transformar, progressivamente, todas as relações de produção em relações assalariadas, o capitalismo acabaria por resumir a luta de classes numa luta entre somente duas classes: a burguesia, ou os capitalistas, e o proletariado, ou os trabalhadores assalariados. Da luta de classes entre estas, ao tomar da burguesia os meios de produção, não mais restariam outras classes sociais, pois a propriedade capitalista seria convertida em propriedade comum. Com isto, acabariam, simultaneamente, proprietários e não proprietários, em favor de trabalhadores e proprietários em comum dos meios de produção. Neste caso, pela luta em torno da produção material da sociedade, o proletariado, como o protagonista desta revolução, ou desta grande transformação das relações sociais e materiais, se negaria a si e à burguesia, realizando o processo dialético marxista de negação e superação da própria sociedade existente, produzindo uma sociedade comunista pós-capitalista. Comunismo de caráter mundial, na extensão do estabelecimento de sua forma econômica anterior, o capitalismo, que atingira abrangência mundial. O comunismo, assim, seria também a realização de uma efetiva comunidade humana mundial.
A fase transitória entre o capitalismo e o comunismo seria uma forma de socialismo, compreendido como etapa inferior do comunismo, em que se constituiria, ainda, um Estado socialista, denominado por Marx como “ditadura do proletariado”, que deveria assegurar a plena passagem da propriedade privada à propriedade coletiva, da sociedade de classes à sociedade sem classes. Este Estado, ou esta “ditadura”, porque, para Marx, todo Estado corresponderia a alguma forma de ditadura de classe, deixaria de existir na medida em que fossem inteiramente eliminadas a propriedade privada dos meios de produção, a exploração e a desigualdade.




Relações de Produção e Modos de Produção

Seria possível compreender, por Materialismo Histórico, considerando-se as elaborações anteriores, o ponto de vista metodológico segundo o qual a compreensão das sociedades deriva do entendimento das relações e das formas de organização materiais de produção, ou seja, dos modos de apropriação e distribuição da produção de bens realizada pelas sociedades. São os homens, antes de tudo, produto destas relações, embora possam atuar contra elas, produzindo sua história não por fora, mas a partir delas. Deste modo, por exemplo, ser servo, escravo ou proletário, não provém de uma disposição ou vontade puramente pessoal, mas de uma condição social decorrente em que as relações materiais de produção são socialmente organizadas em bases servis, escravistas ou capitalista. São estas relações de produção e outras, que se estabelecem diferentemente no tempo e espaço, que determinam uma condição prévia do homem ou que produzem determinados tipos históricos de homens e de humanidade. Da mesma forma, pelo ponto de vista materialista histórico, estas formações sociais, que produzem determinadas condições humanas, são marcadas justamente pelos modos como as sociedades organizaram a sua produção material, com base em determinadas relações de produção.
Deste modo, compreender as sociedades significa partir do entendimento das relações materiais de produção. Como já se observou, essas relações podem ser de classes ou sem classes. Dentre as relações de classes, evidenciam-se, dentre as principais identificadas por Marx, nas sociedades ocidentais, sem prejuízo da existência de outras e de variações entre estas, as relações escravistas antigas, servis e assalariadas de produção. É a relação de escravidão que constitui o escravo e seu senhor, assim como é a relação de servidão que constitui o servo e seu senhor feudal, e é a troca mercantil da força de trabalho por salário que constitui o proletário e o capitalista. A condição simultânea de trabalhador e de proprietário, por sua vez, compreende-se que só pode decorrer de uma relação comunal, em que todos que trabalham dividem igualmente a propriedade dos seus meios de produção e dos seus resultados materiais.
O conceito de relação de produção ilumina e remete, imediatamente, ao conceito marxista de modo de produção, pelo qual a concepção do materialismo histórico identifica um determinado tipo de sociedade. Assim, quando, por exemplo, se faz menção a uma sociedade servil, sabe-se que o seu modo de produção é servil ou feudal. Isto porque o modo de produção indica o modo de organização econômica existente numa sociedade, que se estrutura com base numa relação de produção preponderante. Seguindo-se neste exemplo, então, se o modo de produção for servil, pode-se saber que uma determinada sociedade está baseada num tipo de propriedade privada que se apóia na exploração do trabalho servil, estruturando-se sob relações deste tipo. Se, noutro exemplo, fizer-se menção a uma sociedade comunista, esta será reconhecida como um modo de produção em que prevalecem relações comunais, de divisão igualitária de propriedade, trabalho e riqueza, correspondendo a uma forma econômica socialmente ampla e generalizada em que não há propriedade privada dos meios de produção.
Tratam-se estes últimos apenas de exemplos, embora bastante marcantes na história ocidental. De modo geral, contudo, os conceitos associados de relações de produção e modos de produção são essenciais à compreensão materialista, já que é a partir destes, ou seja, das formas de produção e distribuição materiais socialmente organizadas, que é possível compreender a natureza histórica das sociedades. Se a história, para Marx, é a história das lutas de classes, certamente não é toda história, mas somente parte dela, porque as relações e os modos de organização materiais das sociedades alcançam também as sociedades sem classes e as suas histórias.
Por fim, conforme se demonstrou a respeito, a produção da história dos homens pelos homens, encontrando raiz nos modos de sua organização material, é essencialmente dialética. Aqui, evidencia-se o princípio segundo o qual o ser é o não-ser, que o presente é também seu devir, que a realidade existente, desde o início da sua formação, traz consigo a sua negação, numa incessante luta e unidade de opostos, nos termos expostos pelo próprio Marx . A luta de classes é o princípio de negação próprio das sociedades de classes que, ao superar os tipos de organização material existentes, assentadas em formas de propriedade privada, realizam a sua superação por outras formas sociais de organização material, quer dizer, outros tipos de sociedade. O materialismo é também dialético, porque supõe que nada permanece idêntico a si e que a condição social e humana são históricas, transformando-se incessantemente. Por isto, o marxismo traz consigo uma natureza teórica revolucionária. A revolução supõe a transformação das estruturas existentes, sendo esta intrínseca às sociedades, embora não sempre visíveis aos contemporâneos de uma realidade. E, como a essência das transformações repousa sobre a organização das relações materiais, as revoluções se consumam, na perspectiva marxista, quando estas relações materiais ou os modos de produção são transformados e substituídos por outros, ensejando a formação de novas sociedades. A revolução especificamente moderna, para o marxismo, seria então a revolução anti-capitalista e comunista, substituindo as relações de apropriação privada fundamentadas na exploração do trabalho assalariado pelo estabelecimento da propriedade produtiva comum e igualitária a todos os homens do mundo presente.