domingo, 19 de abril de 2009

A MODERNIDADE

A Modernidade pode, sinteticamente, ser enunciada como um espaço-tempo expansivo, historicamente tendente à globalização, com seus primórdios no Renascimento Humanista e na chamada Revolução Comercial, marcado pela emergência e desenvolvimento de uma cultura baseada na Razão estritamente humana, capaz de compreender o mundo e nele interferir, transformando-o radicalmente e submetendo-o ao conhecimento humano, especialmente sob a forma da ciência e da técnica.

Freqüentemente, a Modernidade é também associada aos grandes eventos posteriores da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, assim como da formação e decisiva influência do pensamento iluminista. Não resta dúvida que o processo de industrialização e urbanização aceleraram a liquidação da principal instituição do mundo feudal, a servidão, resultado do desenrolar do capitalismo, promovendo o desterro forçado dos campos e a constituição de enormes contingentes populacionais de homens livres e sem posses, que formaram a base do chamado proletariado. A Revolução Francesa, por sua vez, representou a grande ruptura histórica com o poder monárquico e com as instituições políticas remanescentes do feudalismo, assentando os princípios da liberdade e da igualdade formais – jurídicas - de direitos entre os homens e da condição da cidadania individual dela decorrente, do poder da lei humana, do republicanismo, do constitucionalismo, assim como da separação da ordem civil do mundo das crenças e da institucionalização obrigatória da educação leiga – não religiosa. O Iluminismo, por sua vez, constituiu-se no grande movimento intelectual propulsor desta nova sociedade, que passava a consolidar o progressivo domínio do capitalismo, na sua forma industrial, e de sua classe ascendente e hegemônica, a burguesia. Trouxe, para o plano político, a força da Razão e as causas do “esclarecimento” do homem, defendendo o conhecimento da realidade contra a superstição e o obscurantismo, e afirmando o indivíduo como ser livre e protagonista da sua realidade, e este, quando no domínio político, cidadão, participante ativo de sua ordem e criador de direitos.

Pode-se sustentar que a Modernidade tem como fundamentos necessariamente associados de sua constituição e progressiva expansão o Capitalismo, adiante definido, e o conhecimento da Ciência. Essa conjunção permite consignar que uma marca prevalecente da cultura humana moderna é o individualismo, que no seu decorrer aparecerá de vários modos, mas que certamente se ampara nos princípios capitalistas da concorrência privada e individual, da liberdade humana e do seu uso racional, além do desenvolvimento de uma intimidade privada.

Compreende-se, então, que o tempo-espaço de formação da Modernidade é inicialmente o do Ocidente Europeu, mas que traz, precisamente, como uma de suas peculiaridades, a tendência à globalização, na esteira do próprio capitalismo, que, por natureza, não reconhece quaisquer fronteiras. Este avassalador processo de expansão e incorporação de outros territórios e sociedades pode ser representado, entre outras conceituações, pelo surgimento do comércio de longa distância europeu e pelas grandes navegações, pela formação dos estados-nações, pelo colonialismo e neo-colonialismo, pelo imperialismo e pela transnacionalização, até a mundialização econômica e política atuais, com a comunicação em tempo-real e a formação de grandes blocos econômicos – só para citar alguns fenômenos relevantes. Hoje, países, regiões e locais são, ainda que desigualmente, profundamente impactados pelo estilo de vida moderno e por seus princípios culturais, moldando-se também à sua economia e instituições políticas. Se sua aceleração ocorre na fase clássica dos eventos estreitamente relacionados da revolução econômica industrial e da revolução social e política francesa, seus primórdios se encontram no Renascimento e na Revolução Comercial e se estendem, com intensidade e abrangência quase totais, até os dias de hoje. Deste modo, ainda que teorias, com suas pertinências, tenham verificado a emergência de formas “pós-modernas” de sociedade, parece difícil sustentar que as grandes maiorias sociais tenham abandonado a Modernidade, justamente porque continuamos a ver vigorar, sem dúvida que com profundas e rápidas transformações, os seus fundamentos e as suas características principais. A propósito, uma destas características é a célere mudança da vida, em todas as áreas, pela valorização do “novo” ante ao tradicional ou antigo, mas sem que isto tenha, até então, lhe subtraído suas bases, que podem ser identificadas no modo econômico capitalista de produzir e consumir e nos componentes culturais dominantes do cientificismo e do individualismo, que permanecem e mesmo se acirram como diretivas principais do estilo de vida moderno.

Ao lado do Individualismo, portanto, e também como uma das condições para este, destaca-se como traço cultural proeminente e dominante da Modernidade, de profundo poder transformador das condições sociais e pessoais e, conseqüentemente, do estilo de vida e das instituições, o conhecimento científico que, diretamente vinculado ao capitalismo, desenrola-se no próprio compasso deste espaço-tempo, produzindo-o decisivamente. Este é certamente um entre outros tipos de conhecimento e se vincula, no seu surgimento e desenvolvimento, à uma época histórica particular da modernidade e aos espaços que conquista. Desse modo, pode-se dizer que o conhecimento científico é um componente determinante da cultura moderna, ainda que não exclusivo. Ao mesmo tempo, o domínio científico do mundo, vinculado à economia capitalista, é possivelmente o seu problema mais controverso, responsável pela emergência do tema da “crise” da modernidade: a ciência, principal difusora da percepção de que o mundo pode ser compreendido e nele se pode interferir eficientemente, ensejando aos homens progresso, liberdade e bem-estar crescentes, também pode acarretar o oposto, sob várias formas, com conseqüências que podem provocar até a morte das espécies humana e naturais.

A ciência poderia ser caracterizada, brevemente, como uma atividade baseada no conhecimento sistemático, submetido à realização de provas e revestido de objetividade. Por sistemático, deve-se compreender aquele conhecimento que visa à resolução de um determinado problema, através da investigação e do acúmulo contínuos de informações. Provas são os meios de auto-certificação que as disciplinas científicas elaboram para verificarem a veracidade das explicações propostas. Objetividade é aquela qualidade que corresponde às características do objeto investigado, ou seja, que lhes são próprias e que, uma vez identificadas, possuem validade geral, independentemente de considerações subjetivas - particulares de um sujeito.

O conhecimento científico é característico da época moderna, também, porque esta se identificaria com a elaboração e o uso generalizado do próprio do método científico, com seu desdobramento em disciplinas de diferentes áreas. O conhecimento científico não é, obviamente, o único a vigorar na modernidade, mas é um produto desta, ao mesmo tempo em que o promove e faz caracterizar-se como época em que este tipo de conhecimento distinto afirmou-se e legitimou-se como característica dela mesma.

Ao lado do conhecimento científico, outras formas de conhecimento que podem ser mencionados são o religioso, mágico, mítico e místico. Estas formas de conhecimento baseiam-se na fé e em crenças, não sendo auto-certificáveis objetivamente. A ciência, do ponto de vista de seu discurso, tende a desfazer da validade destas últimas formas de explicação do mundo, colocando em dúvida sua própria condição de conhecimento. Essas formas, entretanto, não podem deixar de ser consideradas como de conhecimento, no sentido de que servem de explicação e de orientação para a vida e as indagações de muitos indivíduos, embora possam ser denominados conhecimentos “tradicionais” ou de “não modernos”.

A ciência e a técnica se recobrem de enorme legitimação, na modernidade, por relacionarem-se ao inédito incremento de riquezas e à transfiguração das sociedades que são por ela alcançadas. O conhecimento científico está inteiramente presente nos processos produtivos, nas tecnologias de informação e transportes, na resolução de enfermidades, assim como na realização de ouras tantas tarefas da vida rotineira e na resolução de problemas individuais ou coletivos.

A modernidade traz uma nova forma de sociabilidade, ou seja, novas relações, modos e estilos que envolvem a vida coletiva. Nela verifica-se um ritmo intenso de mudanças, muito superior ao das sociedades "tradicionais". A mudança constante, como já se mencionou, caracteriza distintivamente o período moderno de outros. A modernidade dependeu da expansão do Capitalismo e da superação das formas de vida de “sociedades tradicionais” - sobretudo a feudal. Esta ruptura, bem como sua intensidade e abrangência, devem-se diretamente ao capitalismo.

Sumariamente, pode-se caracterizar o capitalismo como um modo de produção e consumo voltado ao lucro, baseado num regime de concorrência mercantil, envolvendo necessariamente trocas desiguais, entre proprietários privados e não proprietários, em que a conversão e circulação de mercadorias pode alcançar todos os bens, inclusive a força de trabalho.

Nem tudo que surge com a modernidade, entretanto, deve ser reduzido a um produto do capitalismo. As idéias e os preceitos de Igualdade, Liberdade, Racionalidade, Justiça, Ética, Democracia, não apenas podem ser admitidos para além dos fundamentos da sociedade capitalista, como nela, muitas vezes, não encontram a oportunidade de sua realização.

A presença da economia de forma capitalista e sua própria expansão, contudo, é essencial para a progressão e consolidação da modernidade, que é, por isto, genuinamente capitalista. Por um lado, quase todo incremento técnico, que hoje domina o mundo e legitima uma cultura racional-científica, foi sendo exigido e agregado à produção capitalista, pela busca compulsiva e quase ilimitada do lucro econômico. As passagens e formações de um capitalismo comercial, para outro industrial e mesmo para outro, hoje denominado pós-industrial, só podem ser compreendidas por esta conjunção de capitalismo e ciência, em que revoluções técnicas impulsionaram e impulsionam a constituição de mercados de massa, precisamente ocasionadas pela realização do objetivo último do lucro de empresas e indivíduos.

Por outro lado, em razão desse objetivo, o mundo e todos os seus objetos e dimensões, quase sem exceção, foram sendo convertidos em mercadoria, em valores de troca voltados ao lucro, o que generalizou a forma do trabalho assalariado livre, dissolvendo ao longo do tempo as formas servis e escravas de produção econômica – mesmo que estas, em determinados períodos e lugares, tenham servido justamente à expansão capitalista. Mesmo recriando-se um universo de desigualdade social, este fato possibilitou o surgimento do indivíduo, entendido como sujeito indivisível, juridicamente livre e guiado por seu próprio arbítrio, criado e dissolvido nas relações competitivas de mercado.


A Sociologia, diga-se de passagem, só poderia ser compreendida como um produto – aliás, relativamente recente – da própria modernidade, como um conhecimento sistemático que se pretende compreender aos fenômenos sociais. E encontra, nas características e nas transformações das formas da vida coletiva que sob ela se realizaram e se realizam – na hipótese de prosseguirmos na vida moderna - seu foco privilegiado.

O período e o espaço geográfico modernos vêm a revelar características que são próprias ou exclusivas, o que os diferencia de períodos e arranjos territoriais anteriores. Estas características foram se consolidando no seu decorrer e reservam sua importância porque, até os dias atuais, se manifestam fortemente na constituição de nossa vida social. E todas elas diretamente associadas à referida interpenetração de capitalismo e ciência.

A modernidade, ao desenvolver uma cultura específica, o chamado humanismo, destacou a figura do indivíduo. A noção moderna de sociedade, por sua vez, contribuição direta do Iluminismo, é a de uma associação de indivíduos livres e conscientes, baseada na idéia de contrato, ou seja, uma associação pactuada entre indivíduos racionais, que são auto-determinados para convencionarem as suas formas de vida. O indivíduo moderno se destaca, deste modo, por apresentar os seguintes atributos: liberdade e autonomia; uma igualdade genérica e uma singularidade como diferente perante outros; a condição de um potencial detentor de direitos.

O indivíduo moderno fundamenta-se na racionalidade e no processo histórico que, convencionalmente, chamou-se de secularização. Esta representa um mundo e sua história inteiramente produzidas pelo homem e não por qualquer outro princípio ou força exterior, sendo o homem capaz de construir formas próprias de criar um direito humano e regular sua vida. A secularização é, especialmente, a ruptura com a idéia da produção divina do direito e da história. A Razão moderna pretende um domínio do mundo pelo conhecimento sistemático e um “desencantamento” deste mundo pela explicação racional – sobretudo científica -, em lugar da explicação não científica. A secularização, ao afirmar a legitimidade, somente, de um Direito Terreno, realça o antropocentrismo, a centralidade do humano e da razão humana própria no mundo, produzindo-o. O homem passa a ser detentor de autonomia, ou seja, de independência individual e coletiva na ação humana, assim como da possibilidade da auto-regulação da vida social ante a natureza ou o domínio das crenças.

Supondo tais característica, podem ser destacados alguns dos mais importantes aspectos que contribuíram para configurar a Modernidade, intimamente relacionados, e necessariamente derivados também da convergência de capitalismo e ciência:



Aspectos Econômico-Sociais


substituição da dependência servil ou patrimonial pelo contrato mercantil: as relações de trabalho e de consumo passam a ser objeto de troca mercantil, substituindo as formas baseadas na escravidão e servidão;

separação dos domínios da produção e do poder político: as classes dominantes, proprietárias de meios econômicos de produção, deixam de exercer seu poder político de modo direto – o que não significa que deixam de deter poder;

afrouxamento dos vínculos hierárquicos, locais e familiares: a família, além de flexibilizar-se internamente, é reduzida em seu papel de socialização, ao dividi-lo com outros lugares de interação social: as relações sociais superam o plano estritamente local, a hierarquia deixa de ser um princípio natural da organização política e é deslocada, sobretudo, para o âmbito das burocracias modernas;

transformação do mundo pelo desenvolvimento da técnica e da ciência: o conhecimento científico e a técnica, resultado do primeiro, aplicados aos processos de produção, consumo e comunicação, modificam inteiramente as formas de vida, que passam a exigir o seu domínio prático e a conter expectativas de resolução dos problemas da vida coletiva e individual;

mercantilização associada à industrialização: a economia mercantil dissemina-se, fruto da ampliação das relações capitalistas, baseada na circulação de bens industrializados;

urbanização e massificação do consumo de bens: o consumo de bens e serviços assume escala grandiosa e são produzidos em séries; a vida social passa a centralizar-se no meio urbano, lugar de concentração das atividades comerciais e industriais.




Aspectos Político-Culturais


legitimação das filosofias leigas (não religiosas) e das ciências: há uma valorização do pensamento racional e independente do homem, inclusive com pretensão à cientificidade, afirmando-se a sua possibilidade de conhecimento do mundo.

autonomia da organização política e dissolução do poder hereditário e clerical: a organização política passa a ser obra da iniciativa humana, passível de ser modificada por estes - especialmente sob a forma do poder constitucional-, dissolvendo as formas hierárquicas e hereditárias de transmissão do poder, assim como o domínio ideológico da religião;

constituição do princípio da legalidade e expansão do princípio e dos universos do Direito: a valorização da racionalidade e liberdade do homem, que sustenta a visão contratual de sociedade, supõe a lei, um princípio geral e impessoal, como a única fonte legítima de obediência; o Indivíduo afirma-se como um sujeito detentor e criador de direitos.

formação dos Estados-Nações, estabelecendo-se uma centralização político-administrativa: os domínios político-administrativos do mundo ocidental europeu, antes muito fracionados territorialmente, são agrupados em unidades nacionais - que passam concentrar os meios de gestão política, jurídica e administrativa.

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