sexta-feira, 12 de junho de 2009

O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO

A Teoria Marxista se constituiu e ainda se afigura como um dos grandes paradigmas do pensamento sociológico. Constituindo-se numa forma de pensamento complexo, a Sociologia dele se apropriou, como outras disciplinas, retirando-lhe tanto categorias gerais de interpretação do fenômeno da sociedade, quanto contribuições decisivas para a compreensão da Modernidade.
O Materialismo Histórico e Dialético ou, simplesmente, o Materialismo Histórico, como é denominada a teoria de Karl Marx, resultou de diversas fontes de análise e de crítica, em particular a filosofia alemã herdeira do hegelianismo, a economia política clássica e a política revolucionária francesa da segunda parte do século XIV. Como legado, o marxismo deixou não apenas o ponto de vista do materialismo histórico da interpretação, mas, diretamente vinculado a este, a análise da formação das sociedades de classes e sem classes, a mais ampla identificação das características do capitalismo, a partir da formulação de sua teoria do valor-trabalho, e as teorias da ideologia e da alienação.



O Materialismo Histórico e a Formação dos Tipos Sociais

No Manifesto Comunista, Marx expõe o princípio que, para muitos intérpretes, sintetiza a teoria do materialismo histórico, segundo o qual a História, até os dias atuais, teria sido a História das Lutas de Classes.
A afirmação, que necessita ser compreendida sob vários aspectos, permite introduzir o problema da natureza das sociedades, de evidente relevância sociológica, e identificar o núcleo da abordagem materialista histórica que possibilita não somente a crítica do capitalismo e de outras formações sociais, como ampara teórica e metodologicamente a teoria sobre o comunismo que adviria do capitalismo moderno.
Em primeiro lugar, essa história a que Marx se refere, diferentemente do que pode parecer, não é toda a história e a de todos os povos, senão que é a história que fora contada pelo pensamento de que a Modernidade tornou-se tributária, ou seja, do Ocidente Europeu, que se destaca, entre outros aspectos, pelo fato de haver sido a história de diferentes sociedades de classes. Não obstante, Marx já reconhecera e teorizara, noutra perspectiva, que mesmo as sociedades de classes, em algum ponto de sua origem, foram sociedades sem classes; que coexistiram aos diversos tipos de sociedades ocidentais de classes, sociedades sem classes; e que, produto da luta de classes, o “motor” daquela história, o homem construiria uma nova história, a história de sua liberdade, ou seja, a história de um mundo sem exploração e sem desigualdades. Deste modo, para Marx, as sociedades de classes, marcadas pela diferença econômica, não eram fenômenos naturais, mas fenômenos sociais e transitórios, como outros componentes da vida coletiva.
De início, portanto, estas considerações sugerem duas condições gerais para a vida coletiva: sociedades de classes, em que se verifica a desigualdade econômica, e as sociedades sem classes, que corresponderiam a sociedades de igualdade econômica.
Nem todas as sociedades de classes são historicamente as mesmas, assim como as sociedades sem classes. Ambos os tipos, contudo, trazem fundamentos, respectivamente, em comum.
Para que existam classes sociais, é necessário que exista, como pressuposto, alguma forma de propriedade privada dos meios de produção. Quando privada, a propriedade não é comum a todos, nem pública, mas de um indivíduo ou grupo de indivíduos. Meios de produção, por sua vez, são aqueles meios ou bens constituídos de lugares, instalações, instrumentos, e outros bens extraídos da natureza e usados na produção, em qualquer de suas etapas, que servem à produção dos bens que são consumidos pelos homens. Meios de produção podem ser, só como exemplos, a terra e seus instrumentos, fábricas, laboratórios ou consultórios, empresas de comunicação, meios que, enfim, possam servir à satisfação de necessidades humanas, que se modificam com a própria história produzida pelo homem.
As classes sociais são formações econômicas, porque estão diretamente vinculadas à atividade coletiva humana de produção e consumo de bens. Classes sociais, para o marxismo, não se referem a qualquer outra categoria social. As classes existem, e a distinção de posses econômicas que as acompanham, em razão da posição que indivíduos ocupam quanto à condição de proprietários ou não proprietários dos meios de produção. Classes são, em síntese, conjuntos de proprietários ou não proprietários dos meios de produção.
Sendo assim, sociedades de classes são desiguais, porque é desigual a propriedade dos meios sociais que servem à produção das necessidades humanas. A finalidade da apropriação privada dos meios de produção, aliás, não é outra senão a possibilidade da distribuição desigual dos bens produzidos, a favor dos proprietários privados dos meios de produção.
A propriedade dos meios de produção sob domínio de um certo número de indivíduos, que constituem uma classe de proprietários, permite a eles a exploração dos não proprietários. Estes, por sua vez, por não serem detentores dos meios de produção necessários à satisfação de suas necessidades, são obrigados a entregar a sua força de trabalho aos proprietários. Regra geral, não proprietários equivalem à condição de trabalhadores. As sociedades de classes, portanto, criam uma divisão entre a propriedade dos meios de produção e o trabalho. A este processo, pelo qual alguma forma de propriedade privada é usada para extrair parte da riqueza produzida pelo trabalho alheio, pode denominar-se exploração. Significa a exploração a subtração de parte da riqueza produzida pelo trabalhador, não para si e seu sustento, mas para o proprietário privado, que o obriga ao trabalho no seu meio de produção particular. Daí decorre a desigualdade: a acumulação de parte da riqueza, por parte da propriedade privada, produzida pelos trabalhadores, enquanto que com estes permanece somente parte de sua riqueza produzida, quando não em proporção somente suficiente para sua reprodução física ou mesmo abaixo disto.
A causa da desigualdade é a exploração e a causa desta, por sua vez, é a propriedade privada dos meios de produção. Historicamente, a exploração pôde se suceder de diferentes formas. Nas sociedades ocidentais, Marx identificou como as principais o trabalho escravo, o trabalho servil e o trabalho assalariado. De uma forma ou de outra, seja pelo trabalho cativo, seja pela dependência feudal, seja pela necessidade de vender sua força de trabalho para sobreviver, a propriedade se utilizou e se utiliza de determinadas relações de produção, tais como estas, para subtrair riqueza do trabalho alheio.
A condição para uma sociedade sem desigualdade e sem exploração e, portanto, sem divisão de classes, seria uma sociedade sem propriedade privada dos meios de produção, ou seja, em que esta propriedade fosse comum. O que equivale afirmar-se que uma sociedade assim é sem propriedade, pois esta, por definição, é privada. A isto corresponde, em contraposição às sociedades de classes, o comunismo: uma sociedade em que se elimina a desigualdade, a exploração e as próprias classes sociais, porque nele vigora a propriedade comum dos meios de produção. Ou, de outra forma, o uso em comum e igualitário, com a respectiva distribuição também igualitária de bens, dos meios de produção necessários à satisfação das necessidades humanas. Comunal é a sociedade, independentemente dos tipos de meios de produção empregados, que se baseia na propriedade ou no uso em comum dos meios de produção e que é, conseqüentemente, ausente de classes sociais. O comunismo, para Marx, significa o fim da divisão da propriedade e do trabalho, bem como da desigualdade na distribuição entre trabalho intelectual e manual, pois todos os indivíduos seriam, simultaneamente e em comum, usuários e beneficiários em comum e igualitariamente dos meios de produção.
As relações comunais ou comunistas de produção consistiriam, em resumo, no compartilhamento em comum dos bens de produção, do trabalho e da riqueza produzida, em proporção equivalente às necessidades de cada indivíduo. A propósito, de modo radicalmente diverso do capitalismo, não somente não haveria mais classe ou desigualdade social, como a produção não se voltaria à acumulação lucrativa, medida por valores quantitativos – o valor de troca - e representada pelo dinheiro, mas seria orientada para a satisfação de necessidades comuns estabelecidas pelos próprios homens.
Em complemento, caberia destacar que, diferentemente do que é insistentemente divulgado vulgarmente sobre o assunto, o comunismo representaria não somente o fim da propriedade privada e da desigualdade, mas também de todas as formas de Estado. Para Marx, só precisam de Estado as sociedades de classes. Por Estado, deve-se compreender uma organização, muito variável historicamente em forma e em dimensão, que concentra os meios de coerção violenta, os meios armados, e que servem à proteção de alguma forma de propriedade privada e exploração vigente. Numa sociedade comunista, ou seja, sem propriedade privada e exploração, o Estado se tornaria desnecessário, pois não mais necessária seria a proteção da propriedade privada de bens. O Estado, que representaria um governo externo à sociedade, em favor da propriedade privada, daria lugar a um auto-governo coletivo de homens livres do jugo da propriedade e com possibilidades iguais de determinarem o curso de suas vidas coletivas. A emancipação do homem estaria representada pela emancipação em relação à limitação da liberdade e à exploração impostas pelas formas de propriedade privada e em relação às formas de Estado existentes para assegurar os diferentes tipos de dominação de classes.
Ao lado do Estado, então compreendido como meio de dominação de classes pela via da violência, Marx vê vigorar a Ideologia. Essa noção, a princípio, foi usada para criticar o caráter de pensamento dominante realizado pela maior parte das idéias filosóficas alemãs de sua época, para depois assumir o caráter de um conceito crítico. Não sendo sinônimo somente de um conjunto indeterminado de idéias, Ideologia, para Marx, constituiria uma “falsa consciência da realidade”, um conjunto de idéias ou representações falsificadoras sobre as relações sociais vividas. Pela Ideologia, a maioria aceitaria como gerais, naturais e válidas, idéias que correspondem ao interesse das minorias proprietárias dominantes. A Ideologia configuraria o outro lado da dominação, exercido, neste caso, pela persuasão e pela educação de determinados modos de ver a realidade e nela se inserir, contando com a participação do próprio dominado. Exemplos de conteúdos ideológicos aceitos por sociedades de classes, durante grandes períodos, foram os de que a cidadania caberia somente aos que fossem considerados humanos; ou de que os homens se submetiam à servidão de outros homens, para assegurar a salvação perante Deus, seu maior senhor; ou de que o trabalho nunca degrada, somente dignifica, ou que o bem-estar e o progresso pessoais dependem somente do indivíduo, independentemente das condições sociais estruturadas.
A existência de classes sociais envolveria uma situação de luta historicamente incontornável, entre as classes dominantes, aquelas que são proprietárias, e as dominadas, não proprietárias. A dominação, da qual o Estado participaria como elemento auxiliar de defesa, corresponderia, antes de tudo, à dominação dos detentores da propriedade dos meios de produção sobre os não proprietários. Tratar-se-ia de uma relação de complementaridade contraditória. Se uma classe não existiria sem a outra, ou seja, não poderia haver escravo sem senhor de escravo, servo sem senhor feudal, nem proletário sem burguês, também as classes dominantes se encontrariam em situação de permanente luta e oposição em relação às dominadas, situação não eliminável enquanto coexistissem. Isto porque a razão desta luta e oposição se encontrariam justamente na propriedade dos meios de produção, controlados privadamente. Sendo a luta de classes a luta das classes não proprietárias contra a exploração e a desigualdade, ela é a luta, essencialmente, contra as sua causa, ou seja, a luta contra a propriedade privada que as submete à condição de classes trabalhadoras dominadas e exploradas.
Nesta perspectiva, a época moderna era encarada por Marx de modo otimista, como uma grande oportunidade histórica para o estabelecimento de uma sociedade sem classes ou comunista, a partir da formação anterior de um capitalismo de dimensão mundial.
O ponto de vista do chamado “socialismo científico” de Marx sustentava que essa era uma tendência da organização material assumida pelas sociedades capitalistas, que ensejariam o comunismo que lhe sucederia. Conforme o autor, o capitalismo tenderia a simplificar o antagonismo ou oposição de classes, propiciando o fim da exploração na história futura sucedânea do capitalismo. Isto porque, ao mercantilizar amplamente o mundo e transformar, progressivamente, todas as relações de produção em relações assalariadas, o capitalismo acabaria por resumir a luta de classes numa luta entre somente duas classes: a burguesia, ou os capitalistas, e o proletariado, ou os trabalhadores assalariados. Da luta de classes entre estas, ao tomar da burguesia os meios de produção, não mais restariam outras classes sociais, pois a propriedade capitalista seria convertida em propriedade comum. Com isto, acabariam, simultaneamente, proprietários e não proprietários, em favor de trabalhadores e proprietários em comum dos meios de produção. Neste caso, pela luta em torno da produção material da sociedade, o proletariado, como o protagonista desta revolução, ou desta grande transformação das relações sociais e materiais, se negaria a si e à burguesia, realizando o processo dialético marxista de negação e superação da própria sociedade existente, produzindo uma sociedade comunista pós-capitalista. Comunismo de caráter mundial, na extensão do estabelecimento de sua forma econômica anterior, o capitalismo, que atingira abrangência mundial. O comunismo, assim, seria também a realização de uma efetiva comunidade humana mundial.
A fase transitória entre o capitalismo e o comunismo seria uma forma de socialismo, compreendido como etapa inferior do comunismo, em que se constituiria, ainda, um Estado socialista, denominado por Marx como “ditadura do proletariado”, que deveria assegurar a plena passagem da propriedade privada à propriedade coletiva, da sociedade de classes à sociedade sem classes. Este Estado, ou esta “ditadura”, porque, para Marx, todo Estado corresponderia a alguma forma de ditadura de classe, deixaria de existir na medida em que fossem inteiramente eliminadas a propriedade privada dos meios de produção, a exploração e a desigualdade.




Relações de Produção e Modos de Produção

Seria possível compreender, por Materialismo Histórico, considerando-se as elaborações anteriores, o ponto de vista metodológico segundo o qual a compreensão das sociedades deriva do entendimento das relações e das formas de organização materiais de produção, ou seja, dos modos de apropriação e distribuição da produção de bens realizada pelas sociedades. São os homens, antes de tudo, produto destas relações, embora possam atuar contra elas, produzindo sua história não por fora, mas a partir delas. Deste modo, por exemplo, ser servo, escravo ou proletário, não provém de uma disposição ou vontade puramente pessoal, mas de uma condição social decorrente em que as relações materiais de produção são socialmente organizadas em bases servis, escravistas ou capitalista. São estas relações de produção e outras, que se estabelecem diferentemente no tempo e espaço, que determinam uma condição prévia do homem ou que produzem determinados tipos históricos de homens e de humanidade. Da mesma forma, pelo ponto de vista materialista histórico, estas formações sociais, que produzem determinadas condições humanas, são marcadas justamente pelos modos como as sociedades organizaram a sua produção material, com base em determinadas relações de produção.
Deste modo, compreender as sociedades significa partir do entendimento das relações materiais de produção. Como já se observou, essas relações podem ser de classes ou sem classes. Dentre as relações de classes, evidenciam-se, dentre as principais identificadas por Marx, nas sociedades ocidentais, sem prejuízo da existência de outras e de variações entre estas, as relações escravistas antigas, servis e assalariadas de produção. É a relação de escravidão que constitui o escravo e seu senhor, assim como é a relação de servidão que constitui o servo e seu senhor feudal, e é a troca mercantil da força de trabalho por salário que constitui o proletário e o capitalista. A condição simultânea de trabalhador e de proprietário, por sua vez, compreende-se que só pode decorrer de uma relação comunal, em que todos que trabalham dividem igualmente a propriedade dos seus meios de produção e dos seus resultados materiais.
O conceito de relação de produção ilumina e remete, imediatamente, ao conceito marxista de modo de produção, pelo qual a concepção do materialismo histórico identifica um determinado tipo de sociedade. Assim, quando, por exemplo, se faz menção a uma sociedade servil, sabe-se que o seu modo de produção é servil ou feudal. Isto porque o modo de produção indica o modo de organização econômica existente numa sociedade, que se estrutura com base numa relação de produção preponderante. Seguindo-se neste exemplo, então, se o modo de produção for servil, pode-se saber que uma determinada sociedade está baseada num tipo de propriedade privada que se apóia na exploração do trabalho servil, estruturando-se sob relações deste tipo. Se, noutro exemplo, fizer-se menção a uma sociedade comunista, esta será reconhecida como um modo de produção em que prevalecem relações comunais, de divisão igualitária de propriedade, trabalho e riqueza, correspondendo a uma forma econômica socialmente ampla e generalizada em que não há propriedade privada dos meios de produção.
Tratam-se estes últimos apenas de exemplos, embora bastante marcantes na história ocidental. De modo geral, contudo, os conceitos associados de relações de produção e modos de produção são essenciais à compreensão materialista, já que é a partir destes, ou seja, das formas de produção e distribuição materiais socialmente organizadas, que é possível compreender a natureza histórica das sociedades. Se a história, para Marx, é a história das lutas de classes, certamente não é toda história, mas somente parte dela, porque as relações e os modos de organização materiais das sociedades alcançam também as sociedades sem classes e as suas histórias.
Por fim, conforme se demonstrou a respeito, a produção da história dos homens pelos homens, encontrando raiz nos modos de sua organização material, é essencialmente dialética. Aqui, evidencia-se o princípio segundo o qual o ser é o não-ser, que o presente é também seu devir, que a realidade existente, desde o início da sua formação, traz consigo a sua negação, numa incessante luta e unidade de opostos, nos termos expostos pelo próprio Marx . A luta de classes é o princípio de negação próprio das sociedades de classes que, ao superar os tipos de organização material existentes, assentadas em formas de propriedade privada, realizam a sua superação por outras formas sociais de organização material, quer dizer, outros tipos de sociedade. O materialismo é também dialético, porque supõe que nada permanece idêntico a si e que a condição social e humana são históricas, transformando-se incessantemente. Por isto, o marxismo traz consigo uma natureza teórica revolucionária. A revolução supõe a transformação das estruturas existentes, sendo esta intrínseca às sociedades, embora não sempre visíveis aos contemporâneos de uma realidade. E, como a essência das transformações repousa sobre a organização das relações materiais, as revoluções se consumam, na perspectiva marxista, quando estas relações materiais ou os modos de produção são transformados e substituídos por outros, ensejando a formação de novas sociedades. A revolução especificamente moderna, para o marxismo, seria então a revolução anti-capitalista e comunista, substituindo as relações de apropriação privada fundamentadas na exploração do trabalho assalariado pelo estabelecimento da propriedade produtiva comum e igualitária a todos os homens do mundo presente.

domingo, 24 de maio de 2009

O POSITIVISMO DURKHEIMIANO

Para Émile Durkheim, o principal autor positivista após Auguste Comte, conhecer a sociedade, conforme expõe em suas “Regras do Método Sociológico”, consiste em conhecer seus Fatos Sociais, em suas configurações próprias e em suas articulações.
Fatos Sociais não são, para Durkheim, quaisquer acontecimentos, mas são Fenômenos Sociais. Estes, aproveitando da concepção positivista já desenvolvida por Comte e seguindo os princípios metodológicos da ciência moderna, são definidos por Durkheim como acontecimentos marcados pela constância e regularidade. Sendo este um pressuposto, todavia, os fatos ou fenômenos sociais são de uma substância diferente daquela identificada por seu antecessor, como se demonstrará adiante.
Conceitualmente, adotando-se as definições literais de Durkheim, Fatos Sociais podem ser definidos como toda forma agir, pensar e sentir coletiva que pode ou é capaz de exercer, sobre os indivíduos, uma coerção exterior.
Na realidade prática, acontecimentos que agreguem estes atributos e se efetivem de modo constante e recorrente, podem ser identificados como normas, regras, hábitos, crenças, costumes, sentimentos e valores comuns.
Para o reconhecimento dos Fatos Sociais, é necessário que sejam reconhecidos os seguintes componentes, de modo simultâneo:
Coercitividade: os fatos sociais são impositivos, obrigando indivíduos a determinadas condutas, queiram eles ou não. É a sociedade que as impõem aos indivíduos. Imposição, neste caso, não quer significar, portanto, qualquer forma de arbítrio que se verifique.
Exterioridade: não são os fatos sociais originados nos indivíduos, mas fora deles. Os fatos sociais são exteriores porque, antes de tudo, são anteriores aos indivíduos, como toda sociedade em relação aos seus membros.
Independência: as sociedades não podem ser consideradas diferentes agregações de indivíduos, cada qual com suas características peculiares. Ao contrário, os indivíduos são passageiros, já as sociedades permanecem. E estas só podem se preservar porque, estando acima e fora dos indivíduos particulares, seus fatos são independentes destes seus membros, que são passageiros. Assim, as sociedades ficam e os indivíduos passam.
Generalidade: Os fatos sociais são gerais. Isto quer dizer que não são particulares ou pessoais, nem universais. Em primeiro lugar, significa afirmar que os fatos sociais são coletivos, ainda que possam se manifestar individualmente em momentos e situações diferentes em que se encontrem os indivíduos. Em segundo, não sendo os fatos sociais universais, significa que variam de sociedade para sociedade, de acordo com o tempo e o espaço – social – em que se realizam. Diferentemente do que defendia Comte, os fatos sociais, embora regulares, não seguem eternamente a mesma uniformidade, nem são completamente previsíveis e, então, não são universais. Os fatos sociais variam conforme tipos de sociedades determinadas. Quer dizer que cada sociedade tem suas regras, crenças, hábitos, costumes, sentimentos e valores coletivos próprios, que é, aliás, o que faz com que os tipos sociais sejam diferentes.
Objetividade: os fatos sociais, por serem exteriores aos indivíduos, constantes e regulares, podem se constituir em objetos de pleno entendimento e constatação, independentemente das inclinações subjetivas dos investigadores, tal como se pode fazer com os objetos de estudo das ciências naturais, os fenômenos naturais. Isto não quer dizer que os fatos sociais são naturais, mas sim que, seguindo o princípio metodológico do positivismo, podem ser compreendidos com o grau de certeza destes, porque podem, em razão daqueles atributos – constância e regularidade – serem inteiramente descritos em suas características específicas.
Fatos sociais, como para toda abordagem científica, seriam “coisas” ou dados, acontecimentos perfeitamente identificáveis.
Destas definições, outras conclusões sobre o campo de estudo da sociedade são extraídas pelo autor, correspondendo ao seu ponto de vista paradigmático dentro da teoria sociológica.
Em primeiro lugar, note-se que o empreendimento de delimitação de regras que assegurassem a pesquisa sociológica encontra-se estritamente dentro dos pressupostos do método positivista, o que faz com que o autor tenha se destacado como o principal dos teóricos quanto à consolidação deste paradigma de interpretação social. Sendo assim, “As Regras do Método Sociológico” expõem didaticamente os caminhos para a aplicação do método científico das ciências da natureza à sociedade, o que caracteriza o positivismo por definição.
A seguir, realce-se que, neste empreendimento, ao passo em que busca criar condições para a realização de análises com o máximo rigor metodológico, Durkheim acrescentou contribuições particulares que tanto diferem de apreciações antecedentes do positivismo, como adicionou novos conceitos e percepções sobre a análise sociológica, que favoreceriam a consolidação deste campo de estudo.
Entre essas contribuições encontra-se a distinção do caráter especificamente social que concerniria à abordagem sociológica. Quer Durkheim afirmar com isto que à Sociologia cabe o estudo de fenômenos coletivos, sendo estes criados, mantidos ou modificados pelos próprios homens. Não se poderia mais buscar explicações sobre acontecimentos sociais, a partir de características, presumivelmente, psíquicas ou biológicas. Para estas dimensões haveria a psicologia e a biologia, que, contudo, não poderiam explicar fatos relacionados às formas coletivas de viver criadas pelos homens.
Nessa esteira, compreender a sociedade significaria analisá-la como um conjunto de fatos sociais que a compõem. Fatos que, então, jamais seriam naturais, mas sim sociais, diferentemente do que fora sustentado, inclusive, por Comte. Social, para Comte, diria respeito ao caráter de representação coletiva dos fatos sociais, ou seja, estes seriam culturais, modos de ver sociais, que fariam sentido para determinadas sociedades, em determinado tempo e espaço. E, enquanto existentes, se imporiam de modo constante e regular.
Os fatos sociais também seriam fatos morais. A moral não é considerada, neste caso, uma disposição do indivíduo, mas uma necessidade de toda sociedade. Os fatos sociais seriam morais, justamente porque seriam impositivos. Assim são as crenças, as regras, as normas, os hábitos, os costumes, os sentimentos e valores comuns. O caráter de imposição é o que há de mais semelhante entre estes fatos. E, se não fosse assim, para Durkheim, as sociedades não se manteriam, já que estes fatos servem para manter a harmonia e a coesão sociais. A existência humana, diferentemente do que preconizaria um discurso de matriz iluminista, não decorreria de sua liberdade, mas ao contrário, da evidência de que o homem é resultado dos princípios que aprende por obrigação, não por opção. Neste caso, a preservação social e pessoal tomam o lugar da liberdade como elemento ideológico a ser valorizado. Por isto, para Durkheim, a sociedade é uma “entidade moral”, já que se compõem de um conjunto de fatos sociais.

Os fatos sociais, que em seu conjunto configuram a sociedade, não servem, não obstante, somente para preservá-la e reproduzi-la. Os fatos sociais, ao se imporem, revelam seu caráter educativo e, por sua vez, para Durkheim, este caráter educativo é necessariamente impositivo ou “moral”. O papel da educação que, na concepção do autor, é realizada de modo hierárquico, das gerações mais antigas sobre as mais novas – e nunca ao contrário – cumpre o papel de socialização impositiva, formando o ser social de acordo com as disposições da sociedade. Em conseqüência, a educação nunca contém função transformadora, mas só conservadora e reprodutora, porque serve para criar e manter sujeitos sociais de acordo com os fatos sociais existentes. Somente quando mudam as sociedades, por decisão coletiva destas, é que muda a educação, acompanhando as mudanças sociais, para fixá-las.
Em consonância com as visões de mundo cartesiana e comteana, para Durkheim a sociedade seria um corpo orgânico de funções. Nesta perspectiva, embora recusando uma abordagem naturalista, o chamado “funcionalismo” deste autor é herdeiro íntimo das concepções mecanicistas e organicistas do mundo. Desta feita, aprendemos, pela imposição dos fatos sociais, a desempenhar funções. Estas estão representadas pelas Instituições. E todo fato social é uma instituição, ou seja, torna regular e constante nossas condutas, num certo universo social. As instituições é que nos condicionam à determinadas condutas, sempre de sentido moral, incorporando este papel educativo, ao mesmo tempo que assegura o controle e a cooperação, ou solidariedade, entre os indivíduos.

domingo, 10 de maio de 2009

O POSITIVISMO COMTEANO

A concepção de uma ciência específica da sociedade, a Sociologia, aparece com o Positivismo, assim exposto na obra de Auguste Comte (1798-1857), “Curso de Filosofia Positiva”.

O Positivismo é uma resposta intelectual às condições vividas pelas sociedades européias que sofriam os impactos da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. Essas sociedades assistiam ao desenvolvimento do capitalismo industrial, com a formação de suas classes fundamentais, a burguesia e o proletariado. Este capitalismo nascente, entretanto, contrariando os ideais de justiça e igualdade que haviam guiado, ideologicamente, a superação econômica e política da sociedade feudal, produzia novas e gritantes formas de desigualdade. O trabalho social não gozava de proteção e de regras de limitação ao seu uso. Situações de miséria e de precárias condições de habitação, com suas conseqüências sociais e individuais, também caracterizavam as novas cidades, sem recursos e infra-estrutura para absorverem as grandes migrações do campo.

Paralelamente a essas condições, mantinham muita força as idéias iluministas, com seus desdobramentos na formação de doutrinas revolucionárias. A um tempo, estas se nutriam dos conflitos sociais e os alimentavam, particularmente aqueles de natureza de classe que, então, tendiam à grande oposição entre burguesia e proletariado.

O Positivismo faria o diagnóstico da situação de desorganização por que passavam essas sociedades, atribuindo-a, igualmente, à propagação das idéias iluministas, que se pautavam pela defesa de princípios como os da igualdade, racionalidade e liberdade dos indivíduos e cidadãos. Ou seja, idéias críticas, no sentido de “negadoras” da sociedade anteriormente existente, mas também da nova sociedade industrial em formação.

Na definição de Positivismo, compreende-se o objetivo de “reorganização” que esta doutrina pretendia para uma sociedade sacudida por desequilíbrios econômico-sociais e conflitos políticos: o da instituição de um enfoque “positivo”, reconstrutor, em lugar de uma mentalidade “negativa”, que seria própria do Iluminismo. O pensamento positivista era simpático à pregação ideológica dos conservadores, que defendiam o retorno à “comunidade”, com a valorização de uma estabilidade baseada na forma hierárquica de organização, na família patriarcal tradicional e nos valores religiosos do catolicismo. Considerava, entretanto, que os progressos econômicos e científicos trazidos pelas duas grandes revoluções eram incontornáveis e desejáveis, diferentemente do pensamento conservador, de quem aproveitava o princípio da ordem hierárquica.

Para o Positivismo, as sociedades européias haviam sofrido uma mudança demasiado brusca de suas instituições, o que contrariaria a lógica própria e interna de seu desenvolvimento – assim como de qualquer outro organismo -, a do desenvolvimento evolutivo lento, sucessivo e progressivo. Essas sociedades, sem uma mentalidade que lhes desse coesão e desprovidas de fundamentos ideológicos e institucionais das sociedades anteriores, encontravam-se em estado de desequilíbrio, “patológico”.

Tratava-se, para Comte, de elaborar uma forma de pensamento capaz de restabelecer a ordem e o progresso, características que seriam normais e naturais a todas as sociedades. Inicialmente, o autor emprestava o nome de “física social” à nova ciência. Fazendo analogias a princípios da própria física, a ordem corresponderia à estática, e o progresso, à dinâmica.

O Positivismo sustentava que, de modo idêntico ao procedimento das ciências naturais e exatas, dever-se-ia conhecer os fenômenos formadores da realidade social, reconhecendo-se o que seriam as suas leis de funcionamento e evolução. A atribuição de um caráter científico ao saber social seria uma necessidade da evolução, também natural. Evolução, na perspectiva comteana, deveria ser compreendida um processo de aperfeiçoamento lento do organismo social, de passagens sucessivas de situações de menor para a maior complexidade. Esse caráter científico substituiria as explicações metafísicas e religiosas que ainda predominavam a respeito das sociedades, seguindo o curso das outras ciências, que também haviam logrado superar as explicações carentes de comprovação.

O conceito de Positivismo corresponde à afirmação de um conhecimento que possa ser exato e comprovado sobre a realidade social, tal como os conhecimentos extraídos pelas ciências da natureza. O Positivismo comteano, então, sustentava a necessidade de aplicação do Método Científico, já utilizado nestas ciências naturais, à compreensão da realidade social. E não poderia ser de outro modo, já que a sociedade seria parte de um organismo natural superior, requerendo o uso deste mesmo método, baseado na observação e análise sistemáticas, até sua certificação objetiva, ou seja, constatável de modo regular na realidade exterior aos indivíduos.

Dessa forma, o Positivismo, servindo-se da Sociologia como disciplina científica, buscaria a compreensão de fenômenos sociais, que seriam tipos específicos de fenômenos naturais, marcados por suas regularidade e constância. Deste modo, acontecimentos que fugissem a este padrão fugiriam ao funcionamento ordenado da natureza, devendo ser corrigidos. O papel da Sociologia seria o de uma espécie de “medicina social”, de caráter de restituição e retificação da ordem, configurando-se, no seu princípio, num saber de natureza conservadora.

Para Comte, o conhecimento da sociedade, organismo natural e em evolução, ou seja, em constante processo de progresso, aperfeiçoamento e complexidade, seria reduzido à constatação de regularidades presentes nos fenômenos sociais, que corresponderiam às suas partes funcionais e ajustadas, às suas instituições. A compreensão racional da sociedade estaria representada pela sua percepção científica convencional, reduzida à constatação de – presumíveis – regularidades atuantes nestes fenômenos sociais – ou instituições.

Resulta destes pressupostos que a sociedade seria um organismo, idéia tributária da visão cartesiana do mundo como uma ordem mecânica. Primeiramente, a sociedade só existiria se fosse uma ordem, ou seja, um conjunto em consenso e harmonia. E uma ordem orgânica, a interdependência de órgãos ou instituições de que os homens participariam, cada qual exercendo funções, quer dizer, papéis anteriormente prescritos. O homem, por sua vez, jamais seria a origem da sociedade ou protagonista de sua existência. Ao contrário, seria um resultado da natureza social e física pré-existentes, destituído de autonomia.

Em oposição às idéias iluministas, em geral, e ao liberalismo, em particular, os princípios da cidadania e das liberdades naturais dos homens seriam destrutivos da sociedade, pois fortaleceriam o egoísmo inerente à condição humana, em detrimento de sua natureza também altruísta. O homem não seria, nem deveria ser livre, mas cooperativo de uma ordem superior, que então lhe asseguraria a preservação individual e coletiva. O dever, por sua vez, deveria substituir o direito. Uma vez que todos obedecessem aos seus deveres sociais, tornar-se-ia dispensável a reivindicação de direitos.

O Positivismo, contudo, não seria defensor da igualdade, ao contrário. Todo organismo natural constituiria uma hierarquia e, portanto, o desempenho de funções mais e menos relevantes. Estas funções não deveriam ser substituídas, nem confundidas. Como paradigma, do mesmo modo que, na vida feudal, às elites morais e intelectuais composta dos senhores e do clero deveria ser confiada a direção do mundo social, e aos servos, classes laborais, somente o trabalho manual e material; na sociedade industrial moderna, de modo semelhante, a direção deveria ser atribuída aos industriais e aos cientistas, enquanto o trabalho, exclusivamente, aos proletários. A propriedade de bens seria também natural e desigual, assim como a dominação. O desenho do mundo social não seria a do equilíbrio entre iguais em poder e riqueza, mas de um universo harmônico de desiguais, com deveres de proteção mútua e repartição desigual da riqueza e propriedades. Imagem esta apropriada por Comte da ordem na vida feudal. Só que, neste caso, a favor da afirmação da sociedade industrial existente, que deveria ser confirmada e conservada pela Sociologia.

À Sociologia, que principia, na elaboração de Comte, conservadora, caberia o papel de descobrir as leis da natureza social e da sua evolução, atuando, tal qual a medicina, como antes mencionado, na correção das disfunções dos seus organismos, objetivando a perpetuação da ordem hierárquica da sociedade. Daí, também as características especificamente naturalista, organicista e evolucionista do Positivismo de Comte.

Essa intervenção corresponderia à evolução do que Comte denominava “Espírito Positivo”, que representaria a racionalidade humana. A idéia de evolução estaria concretamente relacionada à evolução para um Estado Positivo, em que a realidade poderia ser “empiricamente demonstrada”, que coincidiria com a Sociedade Industrial. Este seria o último estágio da evolução humana, pois completamente amparado no saber científico, o único saber verdadeiro, para Comte, em lugar da ilusão das crenças ou da metafísica.

Segundo essa visão evolucionista da história, o Espírito Humano progrediria segundo a “Lei dos Três Estágios”: O Estado “Teológico-Fictício”, nas formas do fetichismo, politeísmo e monoteísmo, em que se recorre à explicação pela imaginação do sobrenatural; o Estado “Metafísico Abstrato”, que explicaria os fenômenos por forças ocultas e imateriais, destinadas a realização de grandes ideais humanos; e o Estado “Positivo-Científico”, em que os fenômenos seriam explicados por leis empiricamente demonstradas, que dizer, demonstradas na própria realidade.

sábado, 2 de maio de 2009

PRINCÍPIOS DO LIBERALISMO

O Liberalismo é a mais genuína doutrina do capitalismo ocidental e, até nossos dias, pode-se afirmar que preponderante. Mais que isto, o Liberalismo demonstra seu enorme vigor e profundidade na estruturação de relações sociais no processo em curso geralmente denominado globalização, justificando e orientando suas principais práticas econômicas e políticas. A força recente demonstrada pelo Liberalismo, ademais, não reside somente no fato de representar interesses e estratégias do capitalismo global, mas também na sua profunda incorporação em estilos de vida, identidades e aspirações dos indivíduos da contemporaneidade. Não somente estes fatos tornam obrigatório o estudo do Liberalismo e de suas influências, pela Sociologia, mas a evidência de que as principais correntes formadoras deste campo de conhecimento, necessariamente, com ele estabeleceram interlocução, e regra geral demarcando diferenças e oposições teóricas. O que se realça nesta abordagem, então, são os fundamentos teórico-ideológicos do Liberalismo “clássico”, de substrato econômico, que não deixaram de ser pressuposto, mesmo que parcialmente, tanto para as teorias e práticas liberais atuais, como para alternativas liberais de ênfase social e política.

O Liberalismo demonstra essa enorme resistência no tempo, certamente, pela vinculação muito estreita com as características mais típicas do modo de produção capitalista, especialmente daquelas relacionadas à emergência de sua forma industrial. Neste contexto, orientou decisivamente a elaboração, representada, sobretudo, pelos “economistas clássicos”, de uma “ciência econômica”, e cumpriu, como ainda hoje cumpre, o papel ideológico de legitimação e “naturalização” da economia capitalista industrial em expansão, como se esta viesse a corresponder a uma forma econômica historicamente necessária. Não sendo, também, a única doutrina a representar este modo de economia, o Liberalismo também se destacou como a principal força intelectual a favor da liberalização das relações de mercado contra os monopólios comerciais, que não raro contaram com a proteção do Absolutismo.

Outro que fator que colaborou para a legitimação social e política do Liberalismo, embora nem sempre com muita propriedade, foi a alusão às virtudes políticas e morais da liberdade individual, diretamente tributárias do ideário iluminista, tais como os da liberdade e dos direitos naturais do homem, as liberdades de associação e de pluralidade política, a liberdade de imprensa, além do constitucionalismo e do republicanismo. Pode-se observar, contudo, que se este ideário é capaz de despertar fascínio e fazer-se meio de exercício de poder, está longe de se configurar suficientemente na Modernidade, cumprindo literalmente o papel de ideologia, embora com enorme poder de estruturação das instituições e identidades próprias do mundo capitalista. Tampouco nem todos os autores do Liberalismo foram ou são integralmente defensores dos mencionados princípios. Muito ilustrativamente, alguns dos mais reconhecidos economistas liberais, clássicos ou contemporâneos, os desconsideraram ou os subsumiram sob as necessidades de reprodução do mercado e das formas de propriedade que lhe dão sustentação, bem como das relações desiguais que lhes dão suporte.

Dentre as definições mais características sobre a natureza e o sentido da sociedade, num sentido amplo, o Liberalismo clássico ampara sua visão de mundo em pressupostos de relativamente fácil entendimento.
O homem seria, por natureza, diferentemente do que propugnara a filosofia dominante até então, um ser econômico, necessariamente assentado numa dimensão individual. Deste modo, cada indivíduo, como produtor e responsável pela satisfação de suas necessidades, buscaria o bem-estar pessoal, consubstanciado na liberdade de aquisição de riquezas próprias, ou, traduzindo-se de outro modo, na constituição e manutenção da propriedade privada. Ontologicamente (quanto ao ser em si), o homem, portanto, estaria previamente definido por um individualismo possessivo, egoísta e utilitário sobre coisas e pessoas, aquisitivo e acumulador de riquezas. Nada disto, portanto, seria compreendido como defeito moral, mas como virtude, inclusive porque, segundo este primado, plenamente de acordo com a natureza humana. Em última instância, a felicidade, reduzida às possibilidades de ganhos materiais, seria um atributo da própria vontade individual. O sucesso ou insucesso seriam decorrências da iniciativa individual, não das desigualdades econômicas e das condições sociais pré-existentes, desde que fosse o homem livre. Esta concepção sugere tanto o “self made man”, a auto-realização, como o princípio da auto-responsabilização do homem pelo seu destino. Bem entendido, para esta concepção liberal, não seriam o egoísmo, a possessividade e o utilitarismo humanos, conseqüências do sistema de concorrência, senão que o contrário, este seria o resultado obrigatório daqueles atributos presumivelmente naturais. Em suma, cada qual cuidando do seu bem-estar próprio, explorando sua “livre iniciativa”, contribuiria para o bem-estar geral.

A sociedade se configuraria, então, como um conjunto de sujeitos econômicos, detentores da propriedade privada de seus bens e força de trabalho, considerados produtores e consumidores independentes, cuja racionalidade estaria orientada para a compra e venda de produtos e de si em um Mercado, cada qual munido de suas capacidades. O trabalho não seria concebido como atividade propriamente coletiva.

O Mercado se revestiria da condição de origem e finalidade de toda atividade social, neste caso, de toda relação entre indivíduos, constituindo-se como lugar da realização coletiva e de coordenação natural dos agentes econômicos privados. No Mercado se materializaria o poder de auto-regulação econômica entre os produtores e consumidores privados, funcionando, nos termos do exposto quanto à economia por Adam Smith, como uma “mão invisível”. Nestes termos, contudo, o Mercado se ergueria como a grande instituição orientadora e sancionadora das relações econômicas. Destas, por vez, produzir-se-ia também uma racionalidade harmonizadora perfeita das relações sociais e políticas, deste que ausentes intervenções indevidas de grupos ou do poder social constituído.

No Mercado repousaria a essência das relações sociais, de acordo com a natureza econômica do homem, uma vez que consistiria na “livre concorrência ou competição” entre agentes econômicos privados, dotados de “livre iniciativa”, em torno justamente do que haveria de mais essencial à vida humana, ou seja, a produção dos bens necessários à satisfação se suas necessidades, convertidos em mercadorias (valores de troca representados quantitativamente por dinheiro), tal como o homem. Este, medido pela abstração do dinheiro, realizaria o seu ser “ser” nas possibilidades do seu “ter”.

No plano político, o Estado, também como instituição vista como natural, justificaria sua existência no imperativo de resguardo da propriedade privada e, particularmente, das relações de concorrência econômica entre os agentes privados, já que esta constituiria o meio legítimo de acumulação e de repartição das riquezas privadas, devendo ser protegida pela lei. Não obstante, esta proteção, que redundaria na perda momentânea de alguns, em favor do correspondente ganho de outros, preservaria o mecanismo da concorrência como indutor de compensações progressivas, assegurando, em última instância, o ganho ampliado de todos. Assim, o fracasso no jogo competitivo seria também positivo ao crescimento econômico e à felicidade geral, uma vez que impediria a acomodação e impeliria à busca de novas explorações de mercado por parte dos malogrados.

A propriedade privada de bens e de trabalho, que possibilitasse e impulsionasse a ação econômica particular ou individual na forma de pessoas ou empresas na produção, consumo e troca, figuraria como um requisito indispensável ao postulado da busca natural pela auto-satisfação econômica. Liberada e defendida pelo Estado, a propriedade não somente asseguraria a liberdade do indivíduo, a condição do homem evitar a servidão e a escravidão, nos termos do que já fora defendido por John Locke, mas o princípio da contratualidade entre indivíduos como a forma de ordenação social por excelência, que preservaria tanto o bem-estar pessoal, como o coletivo.

Ao Estado caberia então um papel limitado, mas indispensável, nesta ordem, como instituição sempre coexistente à sociedade. Quanto mais se aproximasse de um tipo “puro” ou modelar o capitalismo e o Liberalismo que lhe representasse, mais deveria ser esta instituição governante um “Estado Mínimo”. Compreenda-se “mínimo” não como fraco, mas sim como resumido ao “mínimo” papel de todo Estado, qual seja, a manutenção das relações sociais existentes pelo uso da força física. Um “Estado policial”, em síntese. De acordo também com uma moldagem modelar, este Estado não poderia ser regulador, planejador ou interventor na economia, muito menos empreendedor, além de descartar o papel de provedor: a ele não caberia promover políticas sociais, como as de saúde, educação e previdência. O uso e o consumo destes bens sociais, também convertidos em mercadoria, deveria se efetivar de acordo com as escolhas e possibilidades dos homens livres para produzir e empreender. O Estado deveria se encarregar, tão somente, da ordem vigente, quer dizer, da propriedade privada e da livre concorrência.

Ao Estado caberia, por extensão, a conservação da propriedade privada e do princípio concorrencial da troca monetária, contra qualquer tipo de contestação de classes e injunção perturbadora desta dinâmica. Ao menos discursivamente, o Liberalismo se notabiliza pela recusa em adotar medidas que favoreçam grupos ou monopólios, devendo atuar precisamente para evitá-las, cerceando impedimentos à livre-concorrência. Mesmo que entre desiguais, o princípio do “lassaiz-faire” (livre fazer) deve ser resguardado, para que os homens possam livremente dispor de suas capacidades e progredir. Para os liberais, não é a livre concorrência entre indivíduos e empresas que gerariam desigualdades, mas as intervenções de grupos ou instituições que pudessem molestar esta liberdade.







Alguns dos Principais Clássicos Teóricos Liberais:

LOCKE, John. O Segundo Tratado do Governo Civil, 1689/90.

SMITH, Adam. A Riqueza das Nações, 1776.

MALTHUS, Thomas. Ensaio Sobre o Princípio da População, 1798.

RICARDO, David. Princípio da Economia Política e da Taxação, 1817.

TOCQUEVILLE, Aléxis. O Antigo Regime e a Revolução, 1848.

HAYEK, Frederick von. O Caminho da Servidão, 1944.

domingo, 19 de abril de 2009

A MODERNIDADE

A Modernidade pode, sinteticamente, ser enunciada como um espaço-tempo expansivo, historicamente tendente à globalização, com seus primórdios no Renascimento Humanista e na chamada Revolução Comercial, marcado pela emergência e desenvolvimento de uma cultura baseada na Razão estritamente humana, capaz de compreender o mundo e nele interferir, transformando-o radicalmente e submetendo-o ao conhecimento humano, especialmente sob a forma da ciência e da técnica.

Freqüentemente, a Modernidade é também associada aos grandes eventos posteriores da Revolução Industrial e da Revolução Francesa, assim como da formação e decisiva influência do pensamento iluminista. Não resta dúvida que o processo de industrialização e urbanização aceleraram a liquidação da principal instituição do mundo feudal, a servidão, resultado do desenrolar do capitalismo, promovendo o desterro forçado dos campos e a constituição de enormes contingentes populacionais de homens livres e sem posses, que formaram a base do chamado proletariado. A Revolução Francesa, por sua vez, representou a grande ruptura histórica com o poder monárquico e com as instituições políticas remanescentes do feudalismo, assentando os princípios da liberdade e da igualdade formais – jurídicas - de direitos entre os homens e da condição da cidadania individual dela decorrente, do poder da lei humana, do republicanismo, do constitucionalismo, assim como da separação da ordem civil do mundo das crenças e da institucionalização obrigatória da educação leiga – não religiosa. O Iluminismo, por sua vez, constituiu-se no grande movimento intelectual propulsor desta nova sociedade, que passava a consolidar o progressivo domínio do capitalismo, na sua forma industrial, e de sua classe ascendente e hegemônica, a burguesia. Trouxe, para o plano político, a força da Razão e as causas do “esclarecimento” do homem, defendendo o conhecimento da realidade contra a superstição e o obscurantismo, e afirmando o indivíduo como ser livre e protagonista da sua realidade, e este, quando no domínio político, cidadão, participante ativo de sua ordem e criador de direitos.

Pode-se sustentar que a Modernidade tem como fundamentos necessariamente associados de sua constituição e progressiva expansão o Capitalismo, adiante definido, e o conhecimento da Ciência. Essa conjunção permite consignar que uma marca prevalecente da cultura humana moderna é o individualismo, que no seu decorrer aparecerá de vários modos, mas que certamente se ampara nos princípios capitalistas da concorrência privada e individual, da liberdade humana e do seu uso racional, além do desenvolvimento de uma intimidade privada.

Compreende-se, então, que o tempo-espaço de formação da Modernidade é inicialmente o do Ocidente Europeu, mas que traz, precisamente, como uma de suas peculiaridades, a tendência à globalização, na esteira do próprio capitalismo, que, por natureza, não reconhece quaisquer fronteiras. Este avassalador processo de expansão e incorporação de outros territórios e sociedades pode ser representado, entre outras conceituações, pelo surgimento do comércio de longa distância europeu e pelas grandes navegações, pela formação dos estados-nações, pelo colonialismo e neo-colonialismo, pelo imperialismo e pela transnacionalização, até a mundialização econômica e política atuais, com a comunicação em tempo-real e a formação de grandes blocos econômicos – só para citar alguns fenômenos relevantes. Hoje, países, regiões e locais são, ainda que desigualmente, profundamente impactados pelo estilo de vida moderno e por seus princípios culturais, moldando-se também à sua economia e instituições políticas. Se sua aceleração ocorre na fase clássica dos eventos estreitamente relacionados da revolução econômica industrial e da revolução social e política francesa, seus primórdios se encontram no Renascimento e na Revolução Comercial e se estendem, com intensidade e abrangência quase totais, até os dias de hoje. Deste modo, ainda que teorias, com suas pertinências, tenham verificado a emergência de formas “pós-modernas” de sociedade, parece difícil sustentar que as grandes maiorias sociais tenham abandonado a Modernidade, justamente porque continuamos a ver vigorar, sem dúvida que com profundas e rápidas transformações, os seus fundamentos e as suas características principais. A propósito, uma destas características é a célere mudança da vida, em todas as áreas, pela valorização do “novo” ante ao tradicional ou antigo, mas sem que isto tenha, até então, lhe subtraído suas bases, que podem ser identificadas no modo econômico capitalista de produzir e consumir e nos componentes culturais dominantes do cientificismo e do individualismo, que permanecem e mesmo se acirram como diretivas principais do estilo de vida moderno.

Ao lado do Individualismo, portanto, e também como uma das condições para este, destaca-se como traço cultural proeminente e dominante da Modernidade, de profundo poder transformador das condições sociais e pessoais e, conseqüentemente, do estilo de vida e das instituições, o conhecimento científico que, diretamente vinculado ao capitalismo, desenrola-se no próprio compasso deste espaço-tempo, produzindo-o decisivamente. Este é certamente um entre outros tipos de conhecimento e se vincula, no seu surgimento e desenvolvimento, à uma época histórica particular da modernidade e aos espaços que conquista. Desse modo, pode-se dizer que o conhecimento científico é um componente determinante da cultura moderna, ainda que não exclusivo. Ao mesmo tempo, o domínio científico do mundo, vinculado à economia capitalista, é possivelmente o seu problema mais controverso, responsável pela emergência do tema da “crise” da modernidade: a ciência, principal difusora da percepção de que o mundo pode ser compreendido e nele se pode interferir eficientemente, ensejando aos homens progresso, liberdade e bem-estar crescentes, também pode acarretar o oposto, sob várias formas, com conseqüências que podem provocar até a morte das espécies humana e naturais.

A ciência poderia ser caracterizada, brevemente, como uma atividade baseada no conhecimento sistemático, submetido à realização de provas e revestido de objetividade. Por sistemático, deve-se compreender aquele conhecimento que visa à resolução de um determinado problema, através da investigação e do acúmulo contínuos de informações. Provas são os meios de auto-certificação que as disciplinas científicas elaboram para verificarem a veracidade das explicações propostas. Objetividade é aquela qualidade que corresponde às características do objeto investigado, ou seja, que lhes são próprias e que, uma vez identificadas, possuem validade geral, independentemente de considerações subjetivas - particulares de um sujeito.

O conhecimento científico é característico da época moderna, também, porque esta se identificaria com a elaboração e o uso generalizado do próprio do método científico, com seu desdobramento em disciplinas de diferentes áreas. O conhecimento científico não é, obviamente, o único a vigorar na modernidade, mas é um produto desta, ao mesmo tempo em que o promove e faz caracterizar-se como época em que este tipo de conhecimento distinto afirmou-se e legitimou-se como característica dela mesma.

Ao lado do conhecimento científico, outras formas de conhecimento que podem ser mencionados são o religioso, mágico, mítico e místico. Estas formas de conhecimento baseiam-se na fé e em crenças, não sendo auto-certificáveis objetivamente. A ciência, do ponto de vista de seu discurso, tende a desfazer da validade destas últimas formas de explicação do mundo, colocando em dúvida sua própria condição de conhecimento. Essas formas, entretanto, não podem deixar de ser consideradas como de conhecimento, no sentido de que servem de explicação e de orientação para a vida e as indagações de muitos indivíduos, embora possam ser denominados conhecimentos “tradicionais” ou de “não modernos”.

A ciência e a técnica se recobrem de enorme legitimação, na modernidade, por relacionarem-se ao inédito incremento de riquezas e à transfiguração das sociedades que são por ela alcançadas. O conhecimento científico está inteiramente presente nos processos produtivos, nas tecnologias de informação e transportes, na resolução de enfermidades, assim como na realização de ouras tantas tarefas da vida rotineira e na resolução de problemas individuais ou coletivos.

A modernidade traz uma nova forma de sociabilidade, ou seja, novas relações, modos e estilos que envolvem a vida coletiva. Nela verifica-se um ritmo intenso de mudanças, muito superior ao das sociedades "tradicionais". A mudança constante, como já se mencionou, caracteriza distintivamente o período moderno de outros. A modernidade dependeu da expansão do Capitalismo e da superação das formas de vida de “sociedades tradicionais” - sobretudo a feudal. Esta ruptura, bem como sua intensidade e abrangência, devem-se diretamente ao capitalismo.

Sumariamente, pode-se caracterizar o capitalismo como um modo de produção e consumo voltado ao lucro, baseado num regime de concorrência mercantil, envolvendo necessariamente trocas desiguais, entre proprietários privados e não proprietários, em que a conversão e circulação de mercadorias pode alcançar todos os bens, inclusive a força de trabalho.

Nem tudo que surge com a modernidade, entretanto, deve ser reduzido a um produto do capitalismo. As idéias e os preceitos de Igualdade, Liberdade, Racionalidade, Justiça, Ética, Democracia, não apenas podem ser admitidos para além dos fundamentos da sociedade capitalista, como nela, muitas vezes, não encontram a oportunidade de sua realização.

A presença da economia de forma capitalista e sua própria expansão, contudo, é essencial para a progressão e consolidação da modernidade, que é, por isto, genuinamente capitalista. Por um lado, quase todo incremento técnico, que hoje domina o mundo e legitima uma cultura racional-científica, foi sendo exigido e agregado à produção capitalista, pela busca compulsiva e quase ilimitada do lucro econômico. As passagens e formações de um capitalismo comercial, para outro industrial e mesmo para outro, hoje denominado pós-industrial, só podem ser compreendidas por esta conjunção de capitalismo e ciência, em que revoluções técnicas impulsionaram e impulsionam a constituição de mercados de massa, precisamente ocasionadas pela realização do objetivo último do lucro de empresas e indivíduos.

Por outro lado, em razão desse objetivo, o mundo e todos os seus objetos e dimensões, quase sem exceção, foram sendo convertidos em mercadoria, em valores de troca voltados ao lucro, o que generalizou a forma do trabalho assalariado livre, dissolvendo ao longo do tempo as formas servis e escravas de produção econômica – mesmo que estas, em determinados períodos e lugares, tenham servido justamente à expansão capitalista. Mesmo recriando-se um universo de desigualdade social, este fato possibilitou o surgimento do indivíduo, entendido como sujeito indivisível, juridicamente livre e guiado por seu próprio arbítrio, criado e dissolvido nas relações competitivas de mercado.


A Sociologia, diga-se de passagem, só poderia ser compreendida como um produto – aliás, relativamente recente – da própria modernidade, como um conhecimento sistemático que se pretende compreender aos fenômenos sociais. E encontra, nas características e nas transformações das formas da vida coletiva que sob ela se realizaram e se realizam – na hipótese de prosseguirmos na vida moderna - seu foco privilegiado.

O período e o espaço geográfico modernos vêm a revelar características que são próprias ou exclusivas, o que os diferencia de períodos e arranjos territoriais anteriores. Estas características foram se consolidando no seu decorrer e reservam sua importância porque, até os dias atuais, se manifestam fortemente na constituição de nossa vida social. E todas elas diretamente associadas à referida interpenetração de capitalismo e ciência.

A modernidade, ao desenvolver uma cultura específica, o chamado humanismo, destacou a figura do indivíduo. A noção moderna de sociedade, por sua vez, contribuição direta do Iluminismo, é a de uma associação de indivíduos livres e conscientes, baseada na idéia de contrato, ou seja, uma associação pactuada entre indivíduos racionais, que são auto-determinados para convencionarem as suas formas de vida. O indivíduo moderno se destaca, deste modo, por apresentar os seguintes atributos: liberdade e autonomia; uma igualdade genérica e uma singularidade como diferente perante outros; a condição de um potencial detentor de direitos.

O indivíduo moderno fundamenta-se na racionalidade e no processo histórico que, convencionalmente, chamou-se de secularização. Esta representa um mundo e sua história inteiramente produzidas pelo homem e não por qualquer outro princípio ou força exterior, sendo o homem capaz de construir formas próprias de criar um direito humano e regular sua vida. A secularização é, especialmente, a ruptura com a idéia da produção divina do direito e da história. A Razão moderna pretende um domínio do mundo pelo conhecimento sistemático e um “desencantamento” deste mundo pela explicação racional – sobretudo científica -, em lugar da explicação não científica. A secularização, ao afirmar a legitimidade, somente, de um Direito Terreno, realça o antropocentrismo, a centralidade do humano e da razão humana própria no mundo, produzindo-o. O homem passa a ser detentor de autonomia, ou seja, de independência individual e coletiva na ação humana, assim como da possibilidade da auto-regulação da vida social ante a natureza ou o domínio das crenças.

Supondo tais característica, podem ser destacados alguns dos mais importantes aspectos que contribuíram para configurar a Modernidade, intimamente relacionados, e necessariamente derivados também da convergência de capitalismo e ciência:



Aspectos Econômico-Sociais


substituição da dependência servil ou patrimonial pelo contrato mercantil: as relações de trabalho e de consumo passam a ser objeto de troca mercantil, substituindo as formas baseadas na escravidão e servidão;

separação dos domínios da produção e do poder político: as classes dominantes, proprietárias de meios econômicos de produção, deixam de exercer seu poder político de modo direto – o que não significa que deixam de deter poder;

afrouxamento dos vínculos hierárquicos, locais e familiares: a família, além de flexibilizar-se internamente, é reduzida em seu papel de socialização, ao dividi-lo com outros lugares de interação social: as relações sociais superam o plano estritamente local, a hierarquia deixa de ser um princípio natural da organização política e é deslocada, sobretudo, para o âmbito das burocracias modernas;

transformação do mundo pelo desenvolvimento da técnica e da ciência: o conhecimento científico e a técnica, resultado do primeiro, aplicados aos processos de produção, consumo e comunicação, modificam inteiramente as formas de vida, que passam a exigir o seu domínio prático e a conter expectativas de resolução dos problemas da vida coletiva e individual;

mercantilização associada à industrialização: a economia mercantil dissemina-se, fruto da ampliação das relações capitalistas, baseada na circulação de bens industrializados;

urbanização e massificação do consumo de bens: o consumo de bens e serviços assume escala grandiosa e são produzidos em séries; a vida social passa a centralizar-se no meio urbano, lugar de concentração das atividades comerciais e industriais.




Aspectos Político-Culturais


legitimação das filosofias leigas (não religiosas) e das ciências: há uma valorização do pensamento racional e independente do homem, inclusive com pretensão à cientificidade, afirmando-se a sua possibilidade de conhecimento do mundo.

autonomia da organização política e dissolução do poder hereditário e clerical: a organização política passa a ser obra da iniciativa humana, passível de ser modificada por estes - especialmente sob a forma do poder constitucional-, dissolvendo as formas hierárquicas e hereditárias de transmissão do poder, assim como o domínio ideológico da religião;

constituição do princípio da legalidade e expansão do princípio e dos universos do Direito: a valorização da racionalidade e liberdade do homem, que sustenta a visão contratual de sociedade, supõe a lei, um princípio geral e impessoal, como a única fonte legítima de obediência; o Indivíduo afirma-se como um sujeito detentor e criador de direitos.

formação dos Estados-Nações, estabelecendo-se uma centralização político-administrativa: os domínios político-administrativos do mundo ocidental europeu, antes muito fracionados territorialmente, são agrupados em unidades nacionais - que passam concentrar os meios de gestão política, jurídica e administrativa.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A ABORDAGEM SOCIOLÓGICA

Já se considerou preliminarmente que o pensamento sociológico não somente é diverso em sua configuração, mas que também se divide em correntes teóricas e análises que se contrapõem.
Deste modo, não apenas temas ou problemas são analisados de forma diferente ou em perspectivas opostas, mas seria mesmo possível afirmar que se tratam de diferentes sociologias, pois elaboram distintas interpretações do que a vem a ser o grande fenômeno da sociedade.
Então, o que pode haver de pressupostos comuns entre tais correntes de pensamento, algumas das quais adiante estudadas, que permitiriam situá-las dentro de um mesmo campo de conhecimento, no caso, a Sociologia? A indispensável resposta a esta questão, aliás, é parte da resposta à mais usual indagação do princípio deste percurso: que é a Sociologia? Do que ela trata? Qual seu papel para o conhecimento humano?
O aspecto inicial a destacar é que, para a Sociologia, de modo geral, a análise do homem deriva do contexto da vida coletiva em que este se encontra inserido, ou seja, a própria sociedade. Dito de outra maneira e mais incisivamente, o próprio homem só pode constituir-se a partir da sociedade.
É claro que são homens que produzem suas sociedades, diante de determinadas condições estabelecidas. E, dependendo destas condições e das ações dos sujeitos sociais, os homens podem ser mais ou menos independentes e capazes de transformar suas sociedades. No entanto, se os homens podem produzir suas sociedades, só o podem porque são, antes, produzidos por elas. As sociedades só podem ser modificadas, portanto, se os homens, que as transformam, houverem aprendido a nelas viver, nelas reconhecerem-se, houverem minimamente incorporado seus modos de funcionamento, entendido as formas de conhecimento nelas presentes e por elas mesmas elaboradas.
É certo que este processo recíproco de dupla constituição do homem e sociedade não se realiza somente como uma anterioridade desta em relação àquele, sendo mais apropriado considerar este processo uma simultaneidade. Para a compreensão sociológica geral, contudo, a sociedade é anterior no sentido de que é uma condição para a formação da própria humanidade.
Nesta perspectiva, e isto deve ser devidamente realçado, por homem não se compreende uma espécie definida geneticamente, de cujas características resultaria sua consciência e comportamentos. A herança genética configura-se uma premissa para chegar-se à condição humana, seguramente indispensável, mas não uma propriedade suficiente. Também para a Sociologia – o que não seria substancialmente diferente para as demais disciplinas teóricas humanas -, o homem não poderia haver definido sua consciência e sua conduta, anteriormente à experiência social, por ser portador de uma “alma” ou “espírito” imaterial, como defenderiam as religiões, ou por uma suposta natureza “racional” essencial e prévia à existência corpórea, como sustentariam concepções que poderiam ser denominadas “metafísicas”.
E se o homem se caracteriza especificamente por sua razão ou consciência, e nisto se distingue de outras espécies, é porque esta capacidade de entendimento foi formada pela participação na sociedade. Sem a presença nesta, a própria condição humana não seria alcançada, pois não se chegaria a nenhum estado de consciência ou racionalidade, nem as condutas poderiam ser norteadas ou compreendidas por estas últimas. Não haveria, inclusive, como o homem alcançar a própria percepção de sua “humanidade” – esta, já, uma das tantas noções filosóficas construídas sobre a sua própria existência.
As formas de penar e agir humanas, não sendo um mero reflexo ou uma simples cópia das visões de mundo e práticas coletivas de uma sociedade, são, embora modificáveis, referidas, necessariamente, às formas de pensamento, ordenação e ação nela existentes, ou seja, em contextos coletivos mais extensos e mais antigos que os seus sujeitos tomados isoladamente.
A sociedade se apresenta, interfere e modifica o homem mesmo naquelas dimensões da vida que parecem mais naturais, produzindo o homem na medida em que este é inserido no meio social e aprende nele a viver.
Nenhuma idéia moral, por exemplo, que objetive, como é de sua natureza, orientar e julgar a validade de condutas dos indivíduos, conseguiria se formar na mente dos homens antes da influência dos ensinamentos dos que o antecedem e os cercam na vida social, fossem esses, também como exemplos, os pais, professores, irmãos, amigos, sacerdotes, juízes, mídias impressas ou eletrônicas ou quaisquer outras presenças pessoais ou impessoais que se encarregam da inserção e da preparação dos homens na vida social, num determinado tempo e espaço. A noção do que é certo ou errado como conduta e a sua consciência não é anterior e independente da sociedade, mas decorre do que determinada sociedade considera apropriado ou não para a sua existência.
O mesmo princípio do exemplo acima valeria para todos os tipos de práticas humanas. Assim, idéias e opções políticas, regras de etiqueta e de cuidados pessoais, a dedicação a crenças, o cultivo do gosto artístico, os hábitos alimentares, a realização de determinadas atividades esportivas ou a identidade com certos grupos, o aprendizado de formas de produzir e consumir economicamente, são todos estes também exemplos de práticas que caracterizam somente o homem, e nenhuma outra espécie, mas às quais nenhum homem chegaria senão pela influência, e não raro imposição, da sociedade.
Ocorre, contudo, que, a princípio, aqueles que entram no mundo social não são consultados a respeito de suas formas de pensar e agir já existentes, passando a elas a se submeterem. De início, ao menos, este processo funciona como um arbitrário, ou seja, como imposição daqueles que trazem, desde o nascimento, os seus indivíduos ao aprendizado social. Do contrário, fora do convívio e da preparação sociais, permaneceriam apenas seres naturais, sem qualquer consciência e identidade com qualquer forma de humanidade. Identidade, neste caso, caracteriza a condição em que um sujeito, submetido a um processo de configuração e influência social, por um lado passa a ser reconhecido pelo meio em que vive, por adquirir competências para nele operar, mas também formando uma auto-imagem perante este mundo.
A esse processo, pelo qual o ser natural que é substrato do homem se transforma efetivamente em ser humano, ou seja, se transforma de ser puramente natural em ser social, confere-se a denominação de socialização. Sem isto, não se formaria a consciência humana e os homens não adquiririam as capacidades que uma sociedade estabelece para dela pertencer, ao menos em parte, levando-se em conta que a integração a todos os meios de uma sociedade é um fenômeno cada vez mais raro e distante, dadas as suas crescentes complexidades.
Outro processo diretamente associado a este, sem o qual a própria socialização não se realizaria, é a educação. Nela estão contidas as atitudes sociais aqui reiteradas de preparação, aprendizado, configuração, condicionamento, influência, formação, como dimensões deste processo decisivo. Ela, a educação, é o meio que permite, organizada das mais diferentes formas, no tempo e espaço, não somente a passagem do ser natural ao social e ao homem, como, conjuntamente, a preservação da própria sociedade, seja conservando-a, seja modificando-a.
O processo de socialização, como já se mencionou, tende a ser mais absolutamente impositivo nas menores idades, e menos para as maiores idades, desde que estas já tenham passado por um processo mais extenso de preparação social, tendo aprendido a reconhecer o mundo em que vivem em seus hábitos, normas, gostos, modos de pensar e produzir, em suas relações de poder, entre outras dimensões. Esse processo é, contudo, incessante, efetivando-se enquanto o homem participa da vida social, e as possibilidades de alternativas quanto à conduta pessoal dependerá, em muito, da maior ou menor rigidez da própria socialização e da estrutura social em que esta repousa.
Em decorrência, se a condição humana variará, muito decisivamente, em função do nível de participação na sociedade proporcionado pelo processo de socialização, então as formas de educação e de distribuição dos seus ensinamentos a que estão submetidos os homens, definirão também em grande parte as possibilidades de sua existência num determinado universo social – sobre este ponto se retornará adiante em análise específica.
Outro pressuposto crescentemente incorporado à abordagem sociológica, este diretamente hoje compartilhado com a Antropologia e imediatamente vinculado à consideração precedente, é que os tipos humanos constituídos decorrem muito estreitamente dos tipos de sociedade a que pertencem. Esta visão nem sempre foi consensual na Sociologia, que no princípio importou uma visão universalista do homem, bem como uma visão naturalista. Hoje, contudo, ressalta-se o poder que as sociedades, pela socialização e suas formas educativas inerentes, detêm em produzir tipos humanos muito proximamente familiarizados com as formas assumidas pela própria sociedade.
A suposta originalidade que muitas vezes o homem isoladamente pretendeu, visão aliás muito enraizada nas culturas individualistas constituídas pela ocidentalização, cede lugar ao princípio da diversidade social, antes que da diversidade ou absoluta singularidade das pessoas.
Hoje se afigura como bastante evidente que as alternativas pessoais, quer dizer, a de poder constituir muitas e variáveis identidades, é maior em sociedades ditas complexas, aquelas que, por enquanto, poderíamos definir como formadas por estrutura diversificada e composta de muitas sociedades internas, mais ou menos distantes ou interpenetráveis. O contrário, ou seja, a constituição de identidades menos variáveis, deverá ocorrer em universos sociais menos mutantes, diversificados e menos dividido internamente.
Ser, entretanto, homem de uma sociedade ou de outra, ou contar com a possibilidade de um repertório mais ou menos variado de papéis e alternativas, depende decisivamente do meio em que se efetiva o processo de socialização. Neste caso, a visão antropológica ressalta, como se desenvolverá à frente, um processo de endoculturação.
A consciência e a conduta humanas tanto não são anteriores e indiferentes à presença formativa da sociedade sobre os homens, que diferentes arranjos sociais constituirão, historicamente, diferentes tipos de homens. Se os homens são produtores de relações, antes são produtos destas, mas de determinadas relações específicas. Estudar os homens sociologicamente, portanto, é estudar a natureza destas relações em suas formas, causas e sentidos. Aqui, trata-se não do estudo de uma genética biológica, mas de uma genética social 1, quer dizer, do processo de construção do homem em suas relações sociais, das quais se faz herdeiro e propagador. Desta maneira, como exemplo, um homem só poderia ser escravo numa sociedade que tenha instituído e/ou admitido a escravidão como uma forma de relação social, a qual deverá corresponder também uma consciência da aceitação da escravidão. Não poderia haver, em conseqüência, uma consciência da escravidão que inclinasse o homem a se auto-escravizar, se no universo social em que habita já não houvesse a escravidão.
Sem pretender-se estabelecer hierarquização de importância entre as áreas dos conhecimentos humanos, a Sociologia e suas pesquisas, na perspectiva do reconhecimento da diversidade das formações sociais, possibilitarão identificar raízes sociais profundas em problemas antes abordados somente na dimensão individual, fosse pela moral, religiões ou vertentes da psicologia e da medicina. Assim, condutas tidas como desviantes ou patológicas, não somente se referem a padrões de normalidade socialmente estabelecidos numa certa época e lugar, como mesmo muitas patologias podem ter sua origem em causas tipicamente sociais. É o que acontece quando tratamos de muitas formas de vício ou compulsões, ou com doenças recentes e muito freqüentes no nosso meio, como o stress ou a anorexia. Tratando-se de patologias classificáveis por sintomas orgânicos recorrentes, suas causas poderiam ser identificadas em determinados estilos de vida social. Não basta, portanto, afirmar-se que a sociedade é decisiva na formação do homem, mas que, seguindo-se a perspectiva da endoculturação e conseqüente diversidade cultural, a humanidade não é uma condição genérica, mas específica, também formada diferentemente no espaço e tempo, como expressões de diversas “humanidades”.
Repita-se que essas considerações introdutórias não supõem a idéia de acordo com a qual as sociedades não podem, essencialmente, ser modificadas pelos homens. Ao contrário, elas só podem ser mudadas justamente porque são compostas de homens, seres capazes de refletir, quer dizer, de distanciarem-se, compreenderem e voltarem-se sobre as suas próprias sociedades, sobre as realidades que os formaram. Só podem fazê-lo, todavia, a partir do conhecimento adquirido das formas de vida que a própria sociedade constitui e nas quais encontra-se inscrito; formas, estas, internalizadas com maior ou menor eficácia. E, portanto, a mudança humana só é extensa quando é social, superando a escala do indivíduo isolado, pois somente esta é capaz de reinventar consciências, estruturas e ações sociais, possibilitando também a constituição de outros tipos de homens.